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- Cafarnaum: A infância e o meio
#PraCegoVer [Fotografia]: Um bebê e um garoto de aparência triste, vestem roupas azuis, brancas e listradas muito sujas e estão sentados em um calçada disforme ao lado de um saco de lixo e uma vitrine de madeira improvisada que expõe calçados. Imagem disponível em: http://43.mostra.org/_img/_filmes/95892.jpg De acordo com o dicionário online Priberam (2021), o termo “Cafarnaum” designa tanto uma cidade bíblica da Galileia quanto significa um “lugar de tumulto ou de desordem”. Percebe-se que isso é muito sintomático e significativo quando a diretora libanesa Nadine Labaki nomeia seu filme de 2018 com esse mesmo termo, já que a história tem um garoto, Zain, de cerca de 12 anos como protagonista e não a cidade em si. A premissa do filme narra a vida de Zain (Zain Al Rafeea), que está cumprindo pena em um reformatório por ter esfaqueado o homem que casou com sua irmã Sahar (Cedra Izam) de 11 anos. Zain o esfaqueou quando soube que esse, de alguma forma, havia provocado a morte dela. Porém, o fato mais importante que dá início a história é que o garoto está processando seus pais por terem colocado ele no mundo sem as devidas condições de criá-lo, ou criar seus 8 irmãos. A narrativa se desenrola através das respostas do garoto, dos advogados e dos acusados para um juíz e a partir daí todos os lados da história merecem, no mínimo, a nossa atenção e ponderação quanto a forma como a sociedade funciona e age, como a corrupção do Estado impede a execução das leis e como o lógica de exploração e lucro do capitalismo nos afeta. Durante a obra, vemos Zain passar pela fome, alagamento de sua moradia, situação de rua, falta de acesso à escola, abuso, assédio e trabalho infantil. Ele é “funcionário” do dono do mercado, o marido pedófilo de sua irmã. Zain vende suco e balas com seus irmãos e vende drogas quando não lhe restam mais opções. Vale mencionar a fala de sua mãe, Souad (Kawsar Al Haddad), nessa ocasião: "Que bom meu filho, que nosso suco [uma dose da droga, diluída] é mais caro que 1 kg de carne”. O garoto passa por todas essas situações de forma muito madura e inteligente, mas sem perder a essência da ingenuidade infantil. Isso fica muito marcado logo no início do filme quando nota-se as brincadeiras dele com seus amigos. Todos criados durante a guerra, brincam com armas de papelão muito bem detalhadas, dividem cigarros e falam sobre seus trabalhos. O brincar da criança é sua forma natural de desenvolver o cérebro, de entender e se apropriar do mundo e portanto, espelho dele. Veja a incompetência dos Estados e a ganância da parte mais privilegiada da sociedade para sanar essas questões que são direitos universais dos seres humanos, como comida, educação e moradia. O problema é claro, a desigualdade de distribuição de renda e a crise dos refugiados já é considerada a maior crise humanitária das últimas décadas, mas pouco se faz quanto a isso, pois a camada mais rica da população despreza a mínima existência dos seres incapazes de participarem ativamente do capitalismo. Parafraseando Orwell em seu livro “1984” (publicado em 1949), o constante “estado de guerra” permite aos governantes manter a população controlada por meio do pouco saneamento, emprego, comida, instrução e outras condições básicas de vida, assim, a sociedade entende que está passando por esses problemas por culpa da Guerra e não do Estado. O trecho mais marcante sobre isso ocorre quando Zain (Zain Al Rafeea) é iludido quanto a imigração para a Noruega, o falsificador de vistos e traficantes de crianças, diz ao garoto que só pode fazê-lo viajar se ele puder “provar que existe” e quando ele vai atrás de seus documentos descobre não só que não existem (seus pais nunca o registraram) como também descobre que Sahar (Cedra Izam) havia morrido por conta de uma gravidez e o hospital não a tinha deixado entrar por ela também não possuir documentação. Ou seja, um papel, uma burocracia, vale mais para o Estado e outras instituições do que a própria existência de ambas as crianças. Vale ressaltar que a realidade do filme conversa com a própria trajetória de vida da diretora e seu elenco. De acordo com a BBC (2019), Labaki só convida atores não profissionais para participarem de seus filmes e apenas graças à “Cafarnaum” que Zain Al Rafaeea e seus pais puderam se refugiar na Noruega, como também era o desejo de seu personagem no filme. Dito isso, é muito importante refletir e agir contra as realidades apresentadas na obra, ainda mais frente a atual situação da pandemia sanitária mundial. Se antes dessa, crianças como Zain já sofriam tanto, já se desenvolviam sem condições de vida digna, já eram exploradas, assediadas e vítimas do trabalho infantil e da falta de escolarização, se antes, garotas como a Sahar não tinham nem a oportunidade de serem atendidas por um pronto-socorro, pela simples falta de documentos, imaginem agora se elas têm direito à proteção básica e à imunização contra a covid-19. #cafarnaum, #infância, #refugiados ,#DesigualdadeSocial, #DireitosHumanos Juliana Mendes Santiago Graduanda em Biblioteconomia, na ECA - USP. Referências bibliográficas: CAFARNAUM. Direção de Nadine Labaki. Líbano: Mooz Films, 2018. CAFARNAUM. In: PRIBERAM, Dicionário de Língua Portuguesa Online. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2021 COMO vida de menino sírio mudou após filme que estrela ser indicado ao Oscar. BBC News Brasil. São Paulo. 22 fev. 2019. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2021. ORWELL. George. 1984. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021.
- Rosa e Momo (2020)
Foto publicada em 26 de outubro de 2020 |Copyright REGINE DE LAZZARIS AKA GRETA / Netflix. Fonte: https://br.web.img3.acsta.net/r_1920_1080/pictures/20/10/26/14/12/1822118.jpg #PraCegoVer [Fotografia]: a fotografia mostra ao fundo um grande lençol marrom e lençóis brancos, azuis e coloridos pendurados no varal e encharcados pela chuva. Mostra Momo (Ibrahima Gueye) e Rosa (Sophia Loren) parados na chuva, Rosa sentada e Momo em pé, curvado em sua direção. Momo usa um casaco camuflado e Rosa uma camiseta florida. “Dizem que tudo já está escrito e que não se pode mudar nada. Quero mudar tudo. Quero voltar ao início, quando nada tinha sido escrito.” — Momo Essa frase abre o filme e nos apresenta Momo (Ibrahima Gueye), um senegalês órfão que vive na Itália sob os cuidados de um velho médico e que por motivos fisicos se vê incapacitado de continuar com essa adoção. Momo então, passa a morar na casa de Madame Rosa ( Sophia Loren) que dá abrigo para filhos de prostitutas. O filme, dirigido por Edoardo Ponti, filmado na Itália, aborda temas complexos como a prostituição, a transexualidade, a infância perdida, o tráfico de drogas e os traumas deixados por Auschwitz. Temas pesados e sombrios vistos pela ótica de uma criança solitária. Momo é rebelde no início da obra e sofre atritos com Madame Rosa, que relutantemente o abriga em sua casa, mas incentivado pelo chefe do tráfico, Momo permanece com Rosa para não atrair atenção da polícia. Com o desenrolar, vemos Momo se envolvendo e crescendo no tráfico, sua felicidade é visível ao ser promovido dentro do sistema criminal e com o dinheiro recebido compra uma bicicleta, primeiro traço de infância apresentado. Rotulado como ladrão, marginal e criminoso, Momo é uma criança solitária que não teve exemplos a serem seguidos. Do outro lado, há Madame Rosa, uma típica matrona italiana, sobrevivente de Auschwitz e com traumas de infância que aos poucos a corroem. Em fato, Madame Rosa não fala diretamente para Momo que é uma sobrevivente, mas os códigos em seu braço deixam evidente ao telespectador e, em determinado momento, ela cita sua estadia no holocausto, ficando satisfeita por aquela palavra terrivel não siginificar nada a Momo. A obra é sensível, mostra as dificuldades enfrentadas por um órfão, negro, refugiado em um país estranho, completamente sozinho. A infância perdida é demonstrada na malandragem da rua e na exclusão sentida ao frequentar a escola, que deveria ser responsável pelo acolhimento, e o amadurecimento precoce de Momo ao ser consciente da maldade que existe no homem. “Sou jovem e tenho toda a vida pela frente. Eu sei disso. Mas não ligo muito para a felicidade. Se aparecer, ótimo. Se não… foda-se. Não somos da mesma raça.” — Momo Entretanto, mesmo com todas as mazelas e cicatrizes, Momo se identifica com Madame Rosa, criando uma relação de amizade e cumplicidade. “É quando se perde a esperança que coisas boas acontecem. É reconfortante” — Madame Rosa Forte, é a palavra que se associa a Rosa, lutando até o último minuto para se manter consciente. Rosa salva Momo de decisões ruins e Momo salva os últimos instantes de Rosa. Uma relação arrebatadora de confiança, amor e proteção. Rosa e Momo é uma releitura do livro "A vida pela frente”, de Romain Gary, assinando como Émile Ajar. Assim como no livro publicado em 1975, Madame Rosa (Sophia Loren) é judia e sobrevivente do Holocausto. Momo (Ibrahima Gueye) é um imigrante e órfão. A relação que nasce a partir de vivências mútuas de desespero e desamparo é surpreendente. É retratada as dificuldades dos refugiados, a infância desgarrada, os traumas perpétuos. Rosa e Momo é mais que uma ficção, é o retrato da inocência e brutalidade contidos no mundo. Filme disponível na Netflix. Julia Lopes Graduanda em Letras, na FFLCH - USP. #infância, #refugiado, #itália, #RosaeMomo, #BlackLivesMatter Referências bibliográficas: A vida pela frente (GARY, Romain) MILANI, Robledo. Rosa e Momo. Papo de Cinema, 2021. Disponível em: . Acesso em: 14/10/2021 A VIDA PELA FRENTE, Émile Ajar (Romain Gary). Todavia Livros, 2021. Disponível em: . Acesso em: 14/10/2021. ROSA E MOMO. Adoro Cinema, 2021. Disponível em: . Acesso em: 14/10/2021.
- Um continente abalado: textos do CineGRI que te ajudam a estudar para o vestibular
Durante a pandemia de COVID-19, que teve início no final de 2019, os países da América Latina — e da América, de forma geral, se levarmos em conta os protestos Black Lives Matter e Stop Asian Hate — viram diversas insatisfações populares explodirem em suas ruas. Para além da desigualdade existente no continente em termos de vacina — enquanto o Chile já está na terceira dose, o Haiti vacinou 341 pessoas [1] —, a população enfrenta crises políticas e econômicas que dificultam cada vez mais sua sobrevivência. Abaixo, apresentamos quatro países que passaram e ainda estão passando por “lutas pandêmicas” — tema da nossa atual edição da Revista Cinestesia. Alguns tópicos já foram abordados no Blog do CineGRI mais detalhadamente e estarão indicados, com os devidos links, para que o leitor possa se aprofundar nas questões que mais chamarem sua atenção. BRASIL #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Imagem da ex-presidente Dilma Rousseff. A foto mostra a mulher do pescoço para cima. Ela usa uma blusa de gola quadriculada na cor azul marinho, com detalhes bordados em um tom próximo ao bege. Dilma tem os lábios contraídos, fazendo com que seus traços estejam bem marcados, e a sobrancelha arqueada. Ela olha para o lado. Fonte: https://i.ytimg.com/vi/vwZ5m10y1rQ/maxresdefault.jpg Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado um período de grande turbulência política. O impeachment de Dilma Rousseff, retratado em parte do documentário indicado ao Oscar, Democracia em Vertigem, de Petra Costa, configura um marco dessa instabilidade. Os eventos de 2016 (que já vinham acontecendo desde antes desse fatídico ano) culminaram na saída da presidente, na posse de Michel Temer e na posterior eleição de Jair Messias Bolsonaro. O presidente atual governa durante um período crítico da nossa história, tendo o desafio de enfrentar a maior crise sanitária do século. Entretanto, a gestão negacionista, com um discurso anti-ciência e diversas denúncias de corrupção pouco tem colaborado para que superemos esse momento. Além disso, o governo tem apresentado grande retrocesso quanto às questões ambientais e aos direitos dos povos indígenas, dentre outras pautas que são constantemente ameaçadas. O Brasil, desde o começo de 2019, já presenciou diversas manifestações que levam, em sua maioria, o slogan “vacina no braço, comida no prato”, fazendo referência à falta de vacinas, à alta de preços de alimentos, bem como ao desemprego, que diminuiu o poder de compra da população e chegou a 14,7% no trimestre fechado em março [2]. Somam-se a isso os diversos pedidos de impeachment, que surgem nas vozes que estão nas ruas, são ouvidos e protocolados por diversos partidos políticos e terminam engavetados por Rodrigo Maia e Arthur Lira. No blog do CineGRI, você pode ler mais sobre A Geopolítica da Vacina, os casos de Corrupção, a questão ambiental, a causa indígena e a negligência com as regiões Norte e Nordeste do país, explicitada pelo apagão que ocorreu no Amapá em 2020, em meio a uma pandemia. COLÔMBIA Em abril de 2021, a Colômbia vivenciou uma onda de protestos que viraram notícia nos principais canais de comunicação do mundo. A população foi às ruas contra o aumento de impostos proposto pelo governo de Iván Duque, medida que atingiria os mais pobres. As manifestações foram duramente reprimidas pela polícia e, semanas após o ocorrido, diversas imagens de corpos começaram a circular pela mídia, evidenciando a violência praticada contra o povo. Mesmo após o governo recuar em relação à medida econômica, os protestos continuaram, com ameaças de greve e grande insatisfação popular. A demanda passou a ser por “ações para combater a pobreza, a violência policial denunciada por manifestantes, entre outras questões importantes para os colombianos, como saúde e educação” [5]. Isso é reflexo do crescimento da pobreza no país, que chegou a atingir 42,5% da população em 2020, durante a pandemia [6]. No blog do CineGRI, é possível ler mais sobre esse acontecimento e sobre o passado de luta colombiana. ESTADOS UNIDOS Com a troca presidencial de 2021, os Estados Unidos presenciaram uma tentativa de ameaça à democracia, com a invasão ao Capitólio. Tal tentativa não se concretizou, mas foi uma demonstração de recusa por parte dos seguidores de Donald Trump em aceitar a derrota nas urnas. Uma das consequências visíveis disso é o baixo número de vacinados em estados majoritariamente republicanos. Joe Biden adotou uma postura pró-vacinação à qual os adversários se opõem veementemente [3]. Essa atitude tem atrapalhado o desempenho dos Estados Unidos contra o vírus. Após uma reabertura quase total carregada de esperança de volta à normalidade, o país voltou a ter uma alta de casos e mortes impulsionadas pelo surgimento da variante delta aliado à falta de avanço na vacinação da população [4]. Além disso, o país viveu dois momentos muito marcantes durante a pandemia: o assassinato de George Floyd e de seis mulheres asiáticas em uma casa de massagem (além de outras duas pessoas não-asiáticas). Esses acontecimentos impulsionaram ondas de protestos, como o Black Lives Matter e o Stop Asian Hate, evidenciando o grave problema de racismo e xenofobia que o país em questão enfrenta. DICA EXTRA: HAITI O Haiti é um país que está em chamas desde 2019, quando começou uma onda de protestos pela deposição do presidente Jovenel Moïse e seu governo. Estes eram acusados de desviar bilhões de dólares do Petrocaribe [7], um programa de cooperação com a Venezuela que já estava em crise devido às sanções norte-americanas [8]. O presidente respondeu aos protestos suspendendo a atividade parlamentar em 2020, governando somente por decreto em meio à pandemia. O caos na ilha foi ainda mais agravado pelo assassinato de Moïse em julho deste ano, em circunstâncias ainda pouco esclarecidas [9], e pelo terremoto que atingiu o sul do país no dia 14 de agosto. Crises se acumulam e não se resolvem numa república que, ainda por cima, foi a última a iniciar sua vacinação nas Américas. As lutas pandêmicas vão desde o grito por vacina a disputas políticas internas, passando por apelo de populações que passam fome, vítimas de desemprego, desastres naturais, péssimo gerenciamento durante a pandemia, imperialismo, dentre tantos outros males que assolam a América Latina — além do racismo e xenofobia presentes no continente americano inteiro. Tais temas são retratados nos links que disponibilizamos acima, na edição atual da revista Cinestesia e encerram o ciclo 2020-2021 do CineGRI. Julia Salazar Graduanda em Letras, na FFLCH - USP. #vestibular #américa #américalatina #cinegri #temasvestibular Referências Bibliográficas: [1] NITAHARA, A. Opas: América Latina avança devagar na vacinação contra covid-19. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [2] ALVARENGA, D; SILVEIRA, D. Desemprego mantém recorde de 14,7% e atinge 14,8 milhões de brasileiros no trimestre encerrado em abril. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [3] ALVES, A. R. Com baixa taxa de vacinação e alta de casos, Sul dos EUA vira o 'cinturão da Covid'. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [4] Variante delta faz casos de Covid dispararem em vários países. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [5] LARA, F. Colômbia: Entenda a crise e os motivos dos protestos nas ruas. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [6] LARA, F. Colômbia: Entenda a crise e os motivos dos protestos nas ruas. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [7] ESTER, B. Haiti: Protestos infindáveis em uma república esquecida. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [8] RIVARA, L. Análise | Haiti: a comunidade imperial e a guerra contra a Petrocaribe. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021. [9] GOUDARD, J. Três conclusões tiradas das investigações sobre a morte de Jovenel Moïse no Haiti. Disponível em: Acesso em: 27 de agosto de 2021.
- América Latina, crises e lutas políticas
No filme Memórias do Subdesenvolvimento (1968), dirigido por Tomás Gutiérrez, temos uma obra que discute a situação de Cuba logo após a Revolução Socialista. Essa discussão acontece através do olhar do personagem Sergio, um cubano pequeno-burguês que decide permanecer e acompanhar as transformações após a queda do governo de Fulgêncio Batista. O personagem busca compreender as mudanças pelas quais passou o seu país, ao mesmo tempo que vivencia o processo de “revolução de massas”. Essa situação gera um conflito psicológico no personagem, pois ele representa a classe média intelectualizada que vive em um país subdesenvolvido. Além disso, o contexto do filme também nos mostra características do processo político e social, elementos fundamentais para pensar as crises e lutas políticas que perpassam os países da América Latina. #Pracegover: Diversas pessoas caminhando pela calçada no espaço urbanizado, com lojas, carros e uma avenida. Fonte: https://issocompensa.com/cinema/tomas-gutierrez-alea Nos últimos anos, acompanhamos uma onda de manifestações e crises políticas na América Latina. Desde 2019, foram registradas inúmeras insatisfações populares que foram as ruas no Chile, Bolívia, Equador, Venezuela, Paraguai, Peru e Argentina. Essas crises balançaram os governos desses países ou, pelo menos, os deixaram bastante abalados. Com a pandemia e o agravamento dela, também tivemos turbulências no campo econômico. Foi na madrugada do dia 07 de julho de 2021 que o presidente haitiano Jovenel Moïse foi assassinado a tiros em sua casa em Porto Príncipe. Uma notícia que trouxe grandes preocupações para os países vizinhos. Além disso, no dia 11 de Julho de 2021, os cubanos saíram às ruas com uma lista de reivindicações populares, no que já é considerada uma das maiores ondas de protestos do país. Mesmo com a taxa alta de mortes causadas pela Covid-19, países como Brasil, Colômbia, Argentina, Chile e Peru não têm deixado de levar as suas insatisfações populares para as ruas. Essas manifestações revelam, principalmente, as péssimas condições que a classe trabalhadora da América Latina está enfrentando nos últimos tempos. Isso não é uma novidade para nós: podemos observar essa linha histórica de exploração econômica na obra As veias abertas da América Latina, do autor Eduardo Galeano: o livro faz uma análise histórica da América Latina sob o ponto de vista da exploração econômica e da dominação política, desde a colonização europeia até a contemporaneidade da época em que foi lançado. Na introdução da obra o autor chama a atenção para o seguinte fato: A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precária: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. (2010, p.17) #Pracegover: Manifestante atira coquetel molotov contra forças de segurança no Equador. Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/10/23/america-do-sul-em-turbulencia-veja-em-resumo-os-protestos-e-crises-politicas-na-regiao.ghtml Eduardo Galeano nos deixa uma reflexão muito importante quando pensamos o contexto histórico da América Latina, esse processo de ganhos e perdas ainda é muito expressivo quando pensamos nas ondas de protestos que revelam as crises econômicas e as lutas populares. Amanda Escobar Costa Graduanda em História e bolsista do Projeto CineGRI. #cinegri #memóriasdosubdesenvolvimento #crisespolíticas #americalatina #manifestações Referências Bibliográficas: GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Sergio Faraco. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. MELLO, Michele. América Latina: pandemia não impediu protestos em todo o continente em 2020. Acesso em: 28/08/2021: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/30/america-latina-pandemia-nao-impediu-protestos-em-todo-continente-em-2020 OLIVEIRA, Washington. Memórias do subdesenvolvimento. Acesso em? 28/08/2021: http://www.coisadecinema.com.br/coisadecinema/criticas/Entradas/2011/12/25_Memorias_do_Subdesenvolvimento.html VICENT, Mauricio. O ‘fator Estados Unidos’ irrompe na crise cubana após os protestos contra o Governo. Acesso em: 28/08/2021: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-07-24/o-fator-estados-unidos-irrompe-na-crise-cubana-apos-os-protestos-contra-o-governo.html BBC NEWS BRASIL. Protestos em Cuba: por que parte dos cubanos continua a apoiar governo. Acesso em: 28/08/2021: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57832440 GARCÍA, Jacobo. Presidente do Haiti, Jovenel Moïse, é assassinado a tiros em sua casa em Porto Príncipe. Acesso em: 28/08/2021: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-07-07/presidente-de-haiti-jovenel-moise-e-assassinado-a-tiros-em-sua-casa.html GIRO LATINO. Cuba: morte, fake news e corte à internet após protestos. Acesso em: 28/08/2021: https://girolatino.substack.com/p/cuba-morte-fake-news-e-corte-a-internet
- Sócrates e a encruzilhada da masculinidade do homem negro gay
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: no centro da foto: Sócrates (Christian Malheiros) olhando para frente, com os lábios cerrados. Fundo da foto desfocado. Fonte: . Sócrates é um filme dirigido pelo cineasta Alex Moratto, cujo protagonista homônimo é interpretado pelo ator Christian Malheiros. Após perder sua mãe, o jovem Sócrates, que foi criado somente por ela, agora precisa sobreviver sozinho, lidando com a miséria, a falta de emprego e de renda, além de ter que enfrentar preconceito devido sua orientação sexual. A trama da obra se constrói justamente nesses intermináveis ciclos dignos da Divina Comédia de Dante Alighieri, de sobreviver no inferno em um país tão desigual, racista e homofóbico como o Brasil. As tentativas frustradas de arrumar emprego sendo ainda um jovem menor de idade, de um afeto não correspondido devido aos padrões normativos de sexualidade da sociedade, além do preconceito dentro do seio da sua própria família guiam os caminhos de Sócrates, ou melhor, os seus descaminhos. O filme segue um roteiro que busca problematizar os padrões de masculinidade vigentes dentro de uma sociedade constituída somente para reconhecer, dentro de uma lógica de reprodução social, uma perspectiva dual de gênero cis e heteronormativa: homem e mulher. Na obra de Alex Moratto, percebe-se que quando essa “norma” social não é “respeitada” (como é o caso de Sócrates, por ser um homem gay) pelos corpos que compõem essa sociedade, uma punição deve ser imposta. Tal opressão se enraíza nas estruturas histórica e socialmente constituídas. A respeito disso, Sherry Wolf diz que: A opressão contra lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans, travestis e mulheres transexuais (LGBT) nem sempre existiu, como também nem sempre existiram pessoas LGBT como um segmento específico da população. A opressão de todas as minorias sexuais é uma das inúmeras contradições do capitalismo moderno. O capitalismo cria as condições materiais para que homens e mulheres levem vidas sexuais autônomas, mas, simultaneamente, procura impor normas heterossexuais na sociedade para garantir a manutenção da ordem econômica, social e sexual. (WOLF, 2021) Entretanto, para pensar gênero dentro das especificidades de um país como o Brasil, é necessário observar quais serão os corpos que serão introduzidos dentro dessa imposição dicotômica (homem cis e mulher cis), e como as opressões dos corpos que não se normatizam a esses padrões podem se intensificar a partir de sua raça e classe. É pensando nisso que Sócrates torna-se muito pertinente ao exemplificar o que pode ser a experiência de um jovem da comunidade LGBTQIA+, membro da classe trabalhadora e homem negro no Brasil. O rapaz é rejeitado por grande parte da família e pela sociedade, em primeiro lugar, por não atender um padrão de masculinidade; em segundo lugar, por se distanciar do imaginário de masculinidade negra (homem viril e hipersexualizado). Portanto, é duplamente excluído por não atender a um padrão máximo de universalidade de humanidade construída pelo colonialismo a partir da branquitude (FANON, 2008). E ao mesmo tempo, é excluído por não adotar um padrão de gênero normativo imposto pela sociedade capitalista, que em seu fim último visa a reprodução social. O que essa obra nos traz é o exemplo da necessidade de compreender a realidade da população LGBTQIA+ a partir de sua totalidade, partindo de uma visão de raça, classe e gênero. Essas opressões se coadunam como dispositivos e bases das estruturas do capital, causando impacto objetivo (desemprego, falta de moradia etc.) e subjetivo (saúde mental) para todes esses corpos rebeldes. O Negro Drama de Sócrates nos demonstra a realidade cruel que é a procura da fórmula mágica da paz, sobretudo para aquelas masculinidades cindidas entre o que é ser humano (universal branco) e o que é ser homem (cis e hétero), enquanto só se vê uma estrela meio longe e ofuscada (e aqui encerro minha analogia com os Racionais Mc’s). A paz dentro do sistema capitalista, que busca vigiar e punir os que não se submetem seus corpos a ele, nunca existiu. #masculinidades #sócrates #LGBTQIA+ Willian Marcos Antonio Silva Graduando em História pela USP Referências Bibliográficas: RIBEIRO, A. A. M.; FAUSTINO, D. M. Negro Tema, Negro Vida, Negro Drama: Estudos Sobre Masculinidades Negras Na Diáspora. Revista TransVersos, v. 0, n. 10, 14 ago. 2017. FANON, Franz. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. WOLF, S. As raízes da opressão LGBT. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2021. Pesquisa da UFMG e Unicamp aponta que população LGBT está mais vulnerável ao desemprego e à depressão por causa da pandemia. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2021.
- Infâmia
#PRACEGOVER Fotografia em preto e branco. Imagem do filme “The Children’s Hour” (1961). Em um quarto, à esquerda, uma mulher usando um vestido longo e sapatilhas, os braços rentes ao corpo, olhando para outra mulher à direita, está sentada numa poltrona em frente à janela com os olhos fechados e a luz do sol refletindo em seu rosto. Fonte: “Estou inalteravelmente oposto à produção dessa peça”, disse o então prefeito de Boston, Frederick W. Mansfield, em dezembro de 1935. “O tema gira em torno da homossexualidade, e por isso nada pode ser feito para salvá-la”, adicionou à declaração, banindo a primeira peça daquela que se tornaria uma das maiores dramaturgas e roteiristas americanas do século XX, Lillian Hellman. Baseada numa história real, a peça “The Children’s Hour” estreou na Broadway em 1935 sob aclamação da crítica, no entanto, fora do circuito de Nova York, Hellman enfrentou muita resistência, tanto do público quanto da crítica. Após uma adaptação que alterou profundamente o sentido da peça, a oportunidade para retratá-la no cinema novamente surgiu apenas em 1961, sob a direção do prestigioso William Wyler, contando com duas atrizes muito populares: Audrey Hepburn, que no mesmo ano estrelaria o filme “Breakfast at Tiffany's" (“Bonequinha de Luxo”, dir. Blake Edwards), e Shirley MacLaine, a protagonista de “The Apartment” (“Se meu apartamento falasse”, dir. Billy Wilder) lançado em 1960 . No filme, Martha Dobie (MacLaine) e Karen Wright (Audrey Hepburn), são duas professoras de um internato para garotas em uma pequena, porém rica cidadezinha nos Estados Unidos. Apesar de Karen ser noiva de um médico, Dr. Joe Cardin, há anos ela adia o casamento para poder se dedicar à escola, mas também a Martha, recusando-se a abandoná-la. Em certa ocasião, Martha repreende e proíbe uma aluna, Mary, de participar de um evento escolar em razão de seu comportamento (Mary havia roubado um bracelete de uma colega). Para se vingar, Mary então sugere para a avó, uma influente mulher na cidade, que viu Martha e Karen se engajando em atos “antinaturais”. Esse rumor é suficiente para destruir a reputação da escola e isolar Karen e Martha. Quando Joe Cardin pede que Karen abandone Martha, ele então recebe uma negativa e a abandona. Wyler sabia o quanto o tema seria sensível para a audiência da época, por isso promoveu o filme como uma história sobre como rumores e acusações podem destruir as vidas de qualquer pessoa, por mais admirada e respeitada que ela seja. Por décadas, o diretor nunca admitiu se tratar de um filme cujo tema central é o amor entre duas mulheres. Mas é justamente aí que Wyler, Michael Hayes (roteiro) e Hellman (adaptação) desafiam a audiência da época. No processo de conhecer as duas mulheres e testemunhar seu amor uma pela outra, a audiência entende que não deveria ser permitido que as vidas de duas pessoas sejam destruídas dessa forma, em razão do ódio. Apesar de se sustentar em insinuações, o filme não deixa dúvidas quanto ao amor entre ambas; em uma das primeiras cenas em que explicitamente uma mulher assume seu amor por outra na tela, Martha declara: “[M]as eu te amo, eu te amo como eles dizem que eu te amo!”. E Karen, por seu turno, convida Martha para “começar de novo em outro lugar”. Ao final, o destino de Martha é o mesmo que tantas vezes se repetiu no cinema em filmes que lidam com a homossexualidade, o suicídio. Mas a audiência não vê Karen se reunir com seu noivo. Não há “final feliz”, o que fica é a reflexão sobre o que acabou de assistir. No limite, o que Wyler e Hellman denunciam não é apenas as consequências dos rumores, mas o quanto o ódio e o preconceito são perversos e destrutivos. Em uma sociedade que busca manter as aparências de respeito e civilidade, a incapacidade de admitir a possibilidade do amor entre duas mulheres trouxe à tona o pior nas pessoas. O final da personagem de Hepburn é uma declarada não concessão para aqueles que querem acreditar que se tratava de um amor não correspondido, e por isso criticaram o filme, alegando imoralidade. Nesse sentido, ao desafiar as convenções e denunciar o ódio e o preconceito como os verdadeiros crimes cometidos, The Children’s Hour é, embora contido, uma das mais robustas condenações à homofobia do cinema americano, e continua relevante 60 anos depois. #LGBTQIA+ #preconceito #amor #cinema Laura Pimentel Barbosa é Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Relações Internacionais pela UNESP e Mestre em Ciências Sociais pela mesma universidade. Referências bibliográficas: Filme: The Children’s Hour (Infâmia), Dir. William Wyler, EUA, 1961. The New York Times. Children’s Hour Banned in Boston (1935). Disponível em: . Acesso em 11 de agosto, 2021. Russo, Vito. The Celluloid Closet: homossexuality in movies. Nova York: Harper & Row, 1987.
- A experiência da AIDS e o cinema político em "Buddies"
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Recorte de uma lista com nomes de vítimas da pandemia global de AIDS e, ao lado, as datas de suas respectivas mortes. Sobreposto à lista, está escrito o título do filme “Buddies”. Imagem feita por Arthur J. Bressan Jr. Fonte: https://moviebloke.com/ “Buddies”, filme dirigido, produzido, roteirizado e editado por Arthur J. Bressan Jr., acompanha a história de Geoff, um jovem homem homossexual vítima do vírus HIV que desenvolve a doença da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) na década de 1980, nos Estados Unidos. Enquanto toda a sociedade se recusava a ajudar vítimas da tal doença, David, com a mesma idade, decide ser voluntário de uma ONG que cuidava dos seus irmãos de comunidade infectados na pandemia de HIV. A história pode parecer mais uma tragédia romântica, na qual as sutilezas de um amor são interrompidas por uma morte iminente, mas vai muito além disso. O filme, lançado em 1985, ficou conhecido como primeiro longa-metragem a tratar abertamente da pandemia de HIV e, além disso, ainda coloca ao centro um personagem em estado terminal que nos conta abertamente sobre como era a vida solitária e desesperançosa de um portador do vírus. O diretor deixa claro como a doença, que previamente foi conhecida como “praga gay” ou “câncer gay”, foi um retrocesso não apenas para a sociedade como um todo, mas especialmente para a comunidade LGBTQIA+, que conquistou e desfrutava de uma liberdade sexual nos centros cosmopolitas durante os anos 1950, 1960 e até 1970. A chegada da doença, que foi atrelada em primeiro momento somente aos gays, fez com que estes corpos "recuassem para os seus armários". Enquanto a família "tradicional", formada por uma mulher, homem e seus filhos pudessem usufruir dos espaços, a comunidade LGBTQIA+ carregaria uma marca de vergonha e não pertencimento. O filme se tornou importante por transmitir algumas mensagens: primeiro, sobre como o sistema de saúde ou qualquer outro de ajuda social é construído para atender a um padrão de pessoas; segundo, como a história de movimentos sociais é totalmente silenciada a todo momento possível por um grupo que detém os privilégios. No caso do longa, apesar de ser reconhecido hoje em dia , houve um apagamento de sua relevância na época do lançamento. “Buddies” teve um baixo orçamento e baixa repercussão no seu tempo, muito disso devido ao grande estigma que era falar abertamente sobre HIV/AIDS. Mas, além disso, há também o fato de ser um filme de baixo orçamento e independente, pois era impossível tratar do assunto polêmico em alguma produtora, já que todas se negavam a atrelar seus nomes à comunidade LGBTQIA+. Seu sucesso foi tardio: o filme foi homenageado nas últimas décadas por instituições recentes, como o Berlin International Film Festival, o Outfest: Los Angeles Gay & Lesbian Film Festival e também o Queer Lisboa. Essa ascensão pode representar uma pequena chama de esperança, sendo uma mensagem de que este grupo finalmente reconstruiu espaços possíveis de celebração da arte queer, que sempre existiu. Imagem de divulgação da remasterização do filme, lançado em festivais, como no 22º Festival de Cinema do Rio, em 2018. Fonte: http://www.festivaldorio.com.br/en/films/buddies Longe de mera encenação, o longa foi feito com muita experiência pessoal do diretor. Dois anos após o lançamento, Arthur J. Bressan Jr. faleceu de complicações com o vírus HIV, da mesma forma que o protagonista do filme, Robert Willow. O roteiro, que em primeiro momento parecia simples, se tornou um discurso entoado por todos que vivenciaram a perda de alguém próximo e a luta contra o Estado para assegurar direitos básicos de sobrevivência. Além disso, o longa foi pioneiro no segmento da arte queer que relatou os difíceis anos da pandemia de HIV para a comunidade LGBTQIA+. Essa arte, que teve contribuição de muitos artistas latino-americanos, como Leonilson, no Brasil da década de 80, cumpriu brilhantemente o papel de nos comunicar, hoje e até quando forem acessíveis, sobre estas histórias que, além de apagadas dos livros de história, contam muito sobre como foi construído o preconceito aos LGBTQIA+ e, acima de tudo, como a sociedade operou para hostilizá-los em um passado ainda muito recente. #Buddies #LGBTQ+ #AIDS #HIV #Queer Guilherme Cavalcante, estudante de Letras na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Além de redator, é poeta e ensaísta, tendo publicado recentemente na revista Philia- UFRGS (https://seer.ufrgs.br/philia/article/view/109662) e na revista de arte Caxangá (https://revistacaxanga.files.wordpress.com/2021/07/caxanga-v3-n1.pdf).
- A vida (e a morte) de Marsha P. Johnson e o protagonismo questionado
#PraCegoVer [Fotografia]: No centro da imagem está Marsha P. Johnson, importante ativista para o movimento LGBTQIA+. Ela usa um vestido rosa, colares e uma tiara com flores, segurando uma taça com a mão esquerda. Ao fundo da imagem, uma mesa com uma taça, uma garrafa e um armário com utensílios de cozinha. Fonte: https://revistahibrida.com.br/content/uploads/2018/09/life-and-death-marsha-p-johnsonw710h4732x-1200x799.jpg A vida (e a morte) de Marsha P. Johnson é um documentário dirigido pelo repórter investigativo e cineasta americano David France, lançado em 6 de Outubro de 2017 e disponibilizado pela plataforma Netflix. A obra nos convida a conhecer mais profundamente a história da ativista do movimento LGBTQIA+ Marsha P. Johnson e seu protagonismo nas revoltas de Stonewall no final dos anos 1960, além de paralelamente trazer uma linha investigativa sobre sua morte em 1992, que segue sem uma conclusão. No documentário, somos guiados por Victoria Cruz, conselheira do Anti-Violence Project, organização de Nova York dedicada a auxiliar e defender os interesses de pessoas LGBTQIA+ em casos de violência. Contemporânea de Marsha, apesar de não terem se conhecido, Victoria tem o objetivo de tentar trazer mais clareza para o falecimento de sua irmã de luta com a reabertura do caso em 2017, pois as circunstâncias de sua morte, como inúmeros casos de violência contra transexuais, nunca foram totalmente esclarecidas ou investigadas. Amigos próximos de Marsha na época contestaram a versão de “suicídio” entregue pela polícia local e protestaram pelas ruas de Nova York exigindo respostas, pois ela poderia ter sido vítima de um homicídio. No decorrer da investigação, fica evidente que qualquer passo de Victoria para tentar levantar provas sobre o caso sempre é acompanhado de empecilhos por parte do estado e da polícia de Nova York, como quando ela tenta entrar em contato com delegados que atuaram no caso e eles se recusam a prestar depoimento, ou quando pede detalhes da autópsia para o IML de Nova York e as documentações estão desaparecidas. Negra, prostituta e ativista, Marsha P. Johnson é considerada uma lenda na comunidade LGBTQIA+ nova iorquina. Atuante nas linhas de frente das revoltas de Stonewall, fundou a Gay Liberation Front (Frente de Libertação Gay), um dos movimentos pioneiros contra a perseguição aos LGBT marginalizados. Porém, apesar do progresso conquistado a partir de 1969, viu homens cis gays e mulheres cis lésbicas protagonizarem a causa, questionando o seu papel e o papel das pessoas trans em geral. Assim, juntamente com Sylvia Rivera, criaram a STAR (Street Transvestite Action Revolutionaries, ou Ação Revolucionária de Travestis de Rua) para oferecer suporte, moradia, comida e roupas às pessoas trans desabrigadas nas ruas de Greenwich Village. “Marsha se transforma em um símbolo para “todas” pessoas queers – mas esse “todas” quase sempre significa as experiências universalizadas de homossexuais brancos. A dor específica de Marsha, seu sofrimento, fica em segundo plano. É por isso que conhecemos o sorriso da ativista, mas não os pensamentos que passavam por sua cabeça. É por isso que lembramos Johnson como mártir, mas pouco falamos sobre as causas pelas quais ela lutou” Hugh Ryan sobre Marsha para revista OUT. Além desse caso, o documentário dedica alguns minutos ao caso de Islan Nettles, transexual espancada até a morte por James Dixon, que foi condenado a 12 anos de prisão – nem metade da pena máxima de 25 anos – mostrando que mesmo quando casos são solucionados, os agressores pegam penas mais brandas. No Brasil, não é diferente: segundo dados da organização Transgender Europe, em 2020, tivemos mais de 175 assassinatos de pessoas transexuais, sendo todas as vítimas mulheres trans/travestis, alcançando um triste recorde para o gênero desde que os dossiês começaram a ser divulgados. Mesmo com um grande ganho de espaço e visibilidade, faltam políticas públicas na área da saúde e na segurança pública para o movimento LGBTQIA+, principalmente para corpos transexuais. A sigla T luta contra a violência, carregando a luta diária pela própria vida e existência. #MarshaPJohnson #LGBTQIA+ #STAR #Stonewall #TransRights Lucas Moreira Pinto Aluno de Sistemas de Informação (EACH-USP) e bolsista do CineGRI Ciclo 2020/2021 Referências Bibliográficas CARVALHO, Diana. O ativismo de Marsha P. Johnson foi central na luta por direitos trans. Uol. Disponível em: < https://www.uol.com.br/ecoa/amp-stories/fizeram-historia-marsha-p-johnson/>. Acesso em: 08 de agosto de 2021. VALENTE, Anghel. Marsha P. Johnson, de Stonewall ao fundo do Rio Holland. Revista Híbrida, 2018. Disponível em: < https://revistahibrida.com.br/2018/09/20/a-historia-de-marsha-p-johnson-de-stonewall-ao-fundo-do-rio-holland/ >. Acesso em: 08 de agosto de 2021. SUDRÉ, Lu. Assassinatos de pessoas trans aumentaram 41% em 2020. Brasil de Fato, 2021. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2021/01/29/assassinatos-de-pessoas-trans-aumentaram-41-em-2020>. Acesso em: 08 de agosto de 2021. OLIVEIRA, Luciana de. Associação aponta que 175 pessoas transexuais foram mortas no Brasil em 2020 e denuncia subnotificação. G1, 2021. Disponível em: . Acesso em: 08 de agosto de 2021.
- Quanto Vale ou é por Quilo? CPI da COVID, corrupção e loteamento da vida pelo capital
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: no centro da foto: Nôemia (Ana Lúcia Torres), personagem do filme “Quanto vale ou é por Quilo?” (2005), rodeada de crianças carentes para uma foto de ação de marketing da sua empresa filantrópica Stiner empreendimentos. Fonte: https://tvbrasil.ebc.com.br/cinenacional/episodio/quanto-vale-ou-e-por-quilo Quanto Vale ou é por quilo é um filme dirigido pelo cineasta Sérgio Bianchi, lançado no Brasil no ano de 2005. A obra se constrói a partir de um viés crítico a respeito da lógica de expropriação dos recursos públicos pelo capital privado, protagonizada aqui pela empresa do terceiro setor chamada Stiner empreendimentos, que se utiliza de ações filantrópicas em comunidades carentes para enriquecer. No que tange ao enredo da filmografia, o autor se utiliza de cenas do Brasil colonial, especificamente da lógica de exploração escravista, para fazer um elo de continuidade nos tempos modernos (séc. XXI). Ele pauta uma espécie de “escravidão contemporânea” e mostra que o vilipêndio e a rapina sofridos pela população negra escravizada nos tempos do escravismo colonial ainda existem, agora numa lógica de exploração capitalista que usufrui dos corpos racializados para capitalizar bens públicos por meio das suas “boas ações”. Essa trama do filme pode nos levar a refletir sobre os últimos acontecimentos da política brasileira, sobretudo o escândalo envolvendo o superfaturamento de venda de vacinas por uma empresa do setor privado de medicamentos junto a membros do Ministério da Saúde. Esses fatos vieram à tona devido às investigações da comissão parlamentar de inquérito (CPI) [1], evidenciando ações predatórias do capital, que se utilizam inclusive de práticas como a corrupção e acúmulo de riqueza. Caminhamos rapidamente em direção a quase 600 mil mortes decorrentes da COVID-19 no Brasil, e, apesar do início da vacinação da população, a porta para saída da pandemia que perdura há mais de um ano no mundo todo ainda parece longe. Não bastasse o caráter grave que a própria doença tem, outros fatores sociais, econômicos e políticos colaboraram para que a letalidade da doença no país fosse tão grande. Falta coordenação a nível nacional para o controle da propagação da pandemia e sobra negacionismo científico por parte do governo federal, fazendo com que chegássemos a esse número trágico, e também, que uma comissão parlamentar de inquérito fosse instalada para investigar os supostos, e agora, evidentes crimes cometidos por parte do principal ente federativo da nação. Com o prosseguimento da CPI, descobriu-se que o governo federal realizava negociações a fim de superfaturar vacinas e insumos, engordando o lucro de farmacêuticas e terceiros dentro do Ministério da Saúde, de tal sorte que a mensagem que se anuncia é a seguinte: mesmo com a morte de mais de meio milhão de pessoas, o que deve ser priorizado é o lucro. Com um sorriso digno de filantrópicos, o capital privado dos medicamentos, tal qual na da obra de Sérgio Bianchi, esconde a frase dita em determinado trecho do filme “é a direita faturando em cima da permanência da miséria” e por que não acrescentar "e dos caixões". A corrupção é de fato um ato condenável, porém, não se deve fazer a crítica a essa ação somente por uma concepção moral. A corrupção, como aponta o historiador Benjamin Fogel, é um ato intrinsecamente político (FOGEL, 2021). Portanto, a anticorrupção também deve ser elevada para o campo do político, no qual está relacionada com as outras formas que estruturam nosso modo de produção: direito, economia e Estado. O que se materializa na disposição de corromper, no que tange às estruturas dos bens públicos, é o que o historiador Benjamin Fogel chama de “privatização da vida pública” (FOGEL, 2021). Ora, quando entes representantes do capital se utilizam das máquinas do Estado para acumular riqueza, esse subterfúgio se explica em sua totalidade pela própria característica da fase atual de acumulação do modo de produção capitalista e sua crise estrutural em sua fase neoliberal. “O neoliberalismo não é um desvio da acumulação, mas sua majoração. Formações sociais pós-fordistas (neoliberais) operam formas sociais capitalistas, sendo esta as determinantes daquelas. Qualquer constatação crítica que seja rigorosa cientificamente e fecunda só pode analisar a crise presente, exponenciada pela pandemia, tendo em vista que se trata de crise do capitalismo.” (MASCARO, 2020, p. 10) Assim sendo, a corrupção não seria portanto um desvio, e sim mais uma das engrenagens de acumulação do capital. Tendo isso em vista, as pautas de luta anticorrupção precisam ser incluídas dentro de um projeto de emancipação e superação das estruturas sociais criadas ao longo de mais de 300 anos de escravidão e de mais de 100 anos de uma rearticulação dessas opressões e super explorações que tem a classe, a raça e o gênero como elementos de subsunção dessa lógica de expropriação, como bem nos mostra Bianchi em sua obra. Por fim, resta fazer algumas perguntas: quanto vale a vida de 500 mil pessoas que se foram por uma doença para a qual já existe vacina? Quantos dólares valem o sufocamento de pretos e pretas sem medicamentos para intubação? Quanto vale a perda e a impossibilidade de enlutar entes queridos que perderam a vida nesses quase dois anos de pandemia? Quanto vale... ou é por quilo? Willian Marcos Antonio Silva Graduando em História pela USP Referências bibliográficas e nota: [1] CPI da Covid: Quem é quem no escândalo Covaxin - BBC News Brasil. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2021. CPI da Covid: Quem é quem no escândalo Covaxin - BBC News Brasil. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2021. FOGEL, B. A corrupção é a maior instituição do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2021. MASCARO, Alysson. Crise e Pandemia. São Paulo: Boitempo, 2020.
- Confissões de um Capitão de Polícia...
#Pracegover [FOTOGRAFIA]: Cena do Filme. Dois homens estão no terraço de um prédio. Ao fundo, prédios em construção, um guindaste, o céu cinzento e nublado. Um deles, em terno preto, ao centro olhando para o horizonte com as mãos nos bolsos, outro à direita, também em terno preto, olhando para baixo. Fonte: . “Um dia você vai abrir a torneira e a água correrá vermelha”, o capitão de polícia Bonavia (Martim Balsam) alerta o promotor de justiça Traini (Franco Nero). Os dois estão na cobertura de um prédio, rodeados por vários empreendimentos em construção que o prefeito da cidade se orgulha de estarem sendo levantados em sua gestão. Mas o progresso vem a alto custo; há uma rede de corrupção que envolve a máfia, empreiteiros, políticos (inclusive o prefeito) e oficiais envolvidos nessas construções. Depois de várias tentativas de indiciar os envolvidos e ver seus esforços minados, Bonavia decide que o caminho da lei não é suficiente para fazer justiça e resolve agir por conta própria, por meios escusos. Esse poderia ser um relato real, familiar, mas é o enredo do filme “Confissões de um Capitão de Polícia ao Procurador da República” (Dir. Damiano Damiani, 1971). A Itália e o Brasil são parecidos no aspecto político. Ambos são marcados pelo clientelismo e corrupção. Em ambos, a máquina do Estado foi se tornando cada vez maior para atender aos interesses dos quadros dos partidos e de seus aliados, gerando ainda mais incentivos para que outros atores buscassem lucrar por meio do Estado, seja por atividades rentistas ou pela própria corrupção, ao invés de investir energia e recursos em atividades produtivas que de fato promovam o progresso, a melhoria da vida das pessoas. O cinema de gênero italiano soube captar bem esses problemas em filmes que retratavam histórias de violência policial, crime, corrupção e decadência política, produções chamadas Poliziotteschi, muito populares nas décadas de 1960 e 1970. Em “Confissões de...”, Triani entende os perigos da busca por justiça a qualquer custo. Ao mesmo tempo, sua devoção à lei chega a ser paroquial, como quando declara que: “como homem da lei, não posso criticá-la, apenas aplicá-la”. Mas quando as evidências se tornam inquestionáveis, Triani se depara com uma difícil verdade: os agentes da justiça e da lei, e os políticos que foram eleitos para atender ao povo, usam o sistema para atenderem aos seus próprios interesses. Mais do que isso, é o próprio sistema político que cria os incentivos para a corrupção. Como impedi-la se é o próprio sistema político que faz com que seja quase impossível, mesmo para aquele mais honesto, florescer e prosperar sem troca de favores e sem certo clientelismo? Como impedir a corrupção policial se é o próprio sistema policial que posiciona alguns indivíduos como sendo “acima de qualquer suspeita” e outros, geralmente os mais vulneráveis, como culpados a priori? Damiani, o diretor de “Confissões de...” não oferece uma resposta a nenhuma dessas perguntas. Seu retrato da corrupção é frio e desanimador, pois embora Triani se mantenha fiel à lei e prometa se empenhar na busca por justiça, ele está praticamente sozinho. Ao mesmo tempo, sabe que se dobrar à justiça para fazer justiça ele pode se tornar aquilo que busca combater, e sua vitória seria pírrica; no mundo real, seria como a vitória da Operação Mãos Limpas na Itália ou da Operação Lava-Jato no Brasil. Ambas foram gigantescas, tiveram sucessos, revelaram casos de corrupção... e ambas definharam, seus heróis caíram e seus frutos amargaram. Podemos argumentar que Bonavia, assim como Sérgio Moro e Antonio Di Pietro no mundo real, buscavam justiça e construir uma sociedade em que a corrupção, que de fato custa vidas, não se torne a regra, mas seus meios foram tanto inadequados quanto ineficientes porque, além de questionáveis do ponto de vista legal, não tocam nos incentivos políticos e institucionais que alimentam a corrupção. Não apreendem questões estruturais e institucionais que fazem com que a corrupção seja o caminho mais fácil, mesmo para aqueles que não gostariam de se sujeitar a essa prática. Apontar a história dessas instituições e os incentivos que elas geram é a tarefa de todos aqueles preocupados não apenas com o combate à corrupção, mas também com a justiça social no sentido amplo. [NOTA] Agradeço a Caio Motta pela sugestão do filme. Laura Pimentel Barbosa, doutoranda em Ciência Política pela USP, Bacharel em Relações Internacionais pela Unesp e Mestre em Ciências Sociais pela mesma universidade. #corrupção #lava-jato #instituições #justiça Referências bibliográficas: Confessione di un commissario di polizia al procuratore della repubblica (Bra: Confissões de um Capitão de Polícia ao Procurador da República), Dir. Damiano Damiani, 1971. Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto (Bra: Investigações sobre um cidadão acima de qualquer suspeita), Dir. Elio Petri, 1970. Os intocáveis. Revista Piauí, [2016.]. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2021.
- Collective: quanto lucra um Estado com a imperícia?
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Ao centro, uma mulher com queimaduras na pele realiza uma performance com um pano cobrindo o corpo, em um ambiente repleto de fumaça. Imagem feita por Alexander Nanau. Fonte: https://personaunesp.com.br/colectiv-critica/ O documentário romênio Collective, de 2017, dirigido por Alexander Nanau, foi uma das produções de cunho político mais bem aceitas nos circuitos de cinema dos últimos anos. Ambientado na própria Romênia, a equipe por trás do projeto procura entrevistar todas as pessoas envolvidas no incêndio ocorrido na boate “Colectiv”, em 2015. Em decorrência deste incêndio, faleceram 27 pessoas e 180 ficaram feridas, porém, curiosamente, um número significativo de pessoas faleceram nos dias que seguiram o ocorrido nos hospitais, desencadeando uma investigação extra-oficial sobre o motivo dessas mortes inesperadas. A narrativa nos mostra que, em um esquema encoberto pelo governo de Bucareste, onde ficava a boate, os hospitais públicos operavam com produtos de formação química totalmente inapropriados para o consumo hospitalar, principalmente na área de higienização. Devido às fragilidades e exposições graças às queimaduras, os sobreviventes dos incêndios que permaneciam nesses hospitais contraíram bactérias fortes que resultaram em casos graves encobertos pelo palco político da época. É claro como esse acontecimento nos parece familiar, se pensarmos no ocorrido da boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 2013, mas as infelizes semelhanças não param por aí. No contexto da boate “Colectiv”, descobrimos que o governo financiava alterações nos produtos de limpeza, lucrando com esses atos de imperícia relacionados à vida pública e acabando com as vidas de dezenas de jovens. Não muito distante, a realidade brasileira reproduz a arte documentada. Atualmente, no Brasil, a frente de investigação sobre desregulamentação no tratamento da epidemia de coronavírus lida com diversas hipóteses em que o governo federal lucrou, assim como o de Bucareste, com o sistema de saúde até então universal. A compra superfaturada de vacinas, a possibilidade de propina em cima de cada dose e a desregularidade programada para oferecê-las à população são nossas marcas nacionais de imperícia. Com a constatação dessas realidades muito opostas ao que se espera de um Estado democrático, resta pensar sobre quais aspectos as unidades de poder deste mesmo Estado estão oferecendo para a sua nação com a intenção de lucro próprio e não visando a qualidade de vida do seu público eleitor. Citando um outro documentário de cunho político direto, Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019) apresenta o cenário brasileiro como uma malha de relações interessadas em coisas além do bem-estar do indivíduo brasileiro. Ambos os documentários citados aqui ganharam visibilidade na imprensa e em circuitos de cinema, realizando no gênero documentário uma denúncia mundial sobre governos que nunca estiveram a par do que se imagina uma democracia. É importante ressaltar que a realização destes documentários só foi possível graças à existência de uma imprensa livre e que, embora recorrentemente atacada, pôde operar em busca de uma verdade por trás dos modos como o Estado apresenta a sua própria realidade. A exemplo do livro 1984, de George Orwell, no qual a imprensa só funciona para propagar ideias de interesse partidário, os meios de comunicação dos governos atuais atuam com uma falsa realidade, e só podemos confrontá-los com o jornalismo livre, defendendo a realização de investigações e opiniões fundamentadas em pesquisas. No documentário Collective, um dos entrevistados diz: "Quando a imprensa se curva às autoridades, as autoridades maltratam os cidadãos. Isso sempre aconteceu, em todo o mundo, e aconteceu conosco." Assim, a presença de documentários políticos que denunciam um circuito político, apesar da pressão hostil de seus governantes aos artistas, se mostra como forma alternativa de denúncias contemporâneas às irregularidades. A realização desta livre imprensa não só tem sido benéfica para atrair a atenção em larga escala para irregularidades governamentais, como também explicita o funcionamento dos governos “democráticos” que agem a partir de interesses muito particulares de um grupo pequeno e privilegiado de indivíduos que lucram com a irregularidade na saúde pública e o bem-estar do cidadão comum. #documentário #corrupção #CPI #colectiv #Collective Guilherme Cavalcante, estudante de Letras na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Além de redator, é poeta e ensaísta, tendo publicado no último mês na revista Philia- UFRGS (https://seer.ufrgs.br/philia/article/view/109662) e na revista de arte Caxangá (https://revistacaxanga.files.wordpress.com/2021/07/caxanga-v3-n1.pdf). Referências Bibliográficas: Entenda a CPI da Covid e seus poderes e veja lista de senadores que compõem a comissão. Folha1, 2021. Disponível em: Documentário romeno ‘Collective’ revela descoberta de amplo sistema de corrupção. Isto É, 2021. Disponível em:
- Filhos dos Massacres
#PraCegoVer [Fotografia]: A fotografia mostra um centro comercial totalmente destruído após um bombardeio. Muitos destroços da construção estão espalhados pelo chão. O documentário "Filhos dos Massacres" (Mahmoud Kim, 2015), disponibilizado pela Al Jazeera Documentaries em 2015, um canal de documentários e filmes pan-árabes, mostra depoimentos de sobreviventes palestinos de alguns dos inúmeros massacres ocorridos nas décadas de 70, 80 e 90. Esses depoimentos trazem as tristes vivências pessoais de cada um dos entrevistados, descritas por imagens e situações que sofreram ao longo dos massacres promovidos por exércitos sionistas - movimento político que defende a autodeterminação dos povos judaicos e a criação de um Estado nacional independente onde existiu o antigo Reino de Israel - e que mudaram para sempre as vidas dos que sobreviveram. Abordando principalmente os massacres de Tal Al-Zaatar e Sabra e Chatila, ocorridos na região do Líbano contra refugiados palestinos, eles contam como perderam seus entes queridos e pessoas próximas, além de explicar como funcionavam os cercos. Para entender melhor o contexto dos massacres, é necessários termos um panorama geral do conflito entre Israel e Palestina. Durante o domínio Britânico na região da Palestina - causado pela dissolução do Império Otomano após sua derrota na Primeira Guerra Mundial, no ano de 1921, culminando em um mandato administrativo dos territórios palestinos delegado à Grã-Bretanha pela Liga das Nações - nas décadas de 20, 30 e 40, milhares de judeus migraram para a região da Palestina por conta do movimento político sionista que crescera ao longo da 1GM. Porém, após o Holocausto no ano de 45 e a criação do Estado Israelense no ano de 48 (após o fim do mandato britânico), a população judaica cresceu exponencialmente na região. Assim, todo o histórico de tensão entre os povos e a ocupação israelense na região culminou na Guerra dos Seis Dias (1967), considerada uma grande derrota ao povo árabe, tendo em vista que toda a superioridade militar de Israel foi convertida em território (Sinai e Cisjordânia). Desse modo, assentamentos israelenses, considerados ilegais pela ONU, foram construídos nas regiões ocupadas. Verdadeiros bairros judaicos protegidos por cercas e pelo exército de Israel acabaram restringindo a liberdade de movimento e desapropriando terras, que pertenciam antes aos habitantes palestinos. Por conta disso, em resposta à imposição de Israel dentro do território palestino, a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) lançou diversas operações militares contra as forças armadas israelenses, desencadeando conflitos e massacres para ambos os lados, como a Guerra do Líbano em 1982 e os Massacres Sabra e Chatila (1982) e Tel al-Zaatar (1976), relatados no documentário. Tel AL-Zaatar (1976) Refugiados que deixaram a Palestina em 1948 em direção ao Líbano montaram um campo de refugiados para sobrevivência, com uma vida tranquila e simples ao norte de Beirute. Em resposta ao ataque em Damour promovido pela OPL, o exército sionista montou um cerco que durou 52 dias e é considerado como uma das piores páginas da Guerra Civil Libanesa, pois um grande extermínio de civis palestinos aconteceu. Sabra e Chatila (1982) As forças israelenses montaram um cerco em Sabra e Chatila, bloqueando a saída de moradores nos campos palestinos de Sabra, localizados no Sul de Beirute. É considerada como uma retaliação ao assassinato do Presidente Bachir Gemayel, que considerava os refugiados como população excedente do Líbano. O massacre foi condenado pela ONU como um ato de genocídio. É evidente que os diversos conflitos e massacres promovidos desde o início das tensões entre os dois lados da história são problemas persistentes até os dias atuais e estão longe de chegar ao fim, tendo em vista que mesmo com momentos de cessar-fogo entre as partes, basta uma pequena fagulha para reacender a guerra, que demonstra força armamentista muito maior para o Estado de Israel. Isso eleva constantemente o número de mortos e desalojados, principalmente para a população de palestinos, que busca sua legitimidade enquanto Estado da Palestina e a libertação do controle militar de Israel. Lucas Moreira Pinto Aluno de Sistemas de Informação (EACH-USP) e bolsista do CineGRI Ciclo 2020/2021 #Gaza #Israel #Palestina #Filme #ConflitoIsraelPalestina Referências Bibliográficas: Conflito entre Israel e palestinos: o que está acontecendo e mais 5 perguntas sobre a onda de violência. BBC, 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57149552 . Acesso em: Seis de Junho de 2021. ALZOUBI, Ahmad. Filhos dos Massacres. Monitor do Oriente, 2020. Disponível em: https://www.monitordooriente.com/20200915-filhos-dos-massacres/. Acesso em: Vinte de Junho de 2021. ALFARRA, Jehan. Relembrando a entrega de ‘uma Palestina, completa’. Monitor do Oriente, 2020. Disponível em: https://www.monitordooriente.com/20200630-relembrando-a-entrega-de-uma-palestina-completa/. Acesso em: Vinte de Junho de 2021. ALTMAN, Max. Hoje na História: 1982 - Massacre nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila. Opera Mundi Uol, 2013. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/historia/31231/hoje-na-historia-1982-massacre-nos-campos-de-refugiados-palestinos-de-sabra-e-chatila/. Acesso em: Vinte de Junho de 2021. Massacre de Tel al-Zaatar. Google Arts and Culture. Disponível em: https://artsandculture.google.com/entity/m09880l?hl=pt/. Acesso em: Vinte de Junho de 2021.