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- Olhares sobre o amanhã: as consequências da Primavera Árabe para a Tunísia
Fonte: SensCritique #PraCegoVer: [FOTOGRAFIA] Três pessoas árabes olhando para o nascer do sol, sendo que eles encaram da direita para a esquerda. São duas mulheres nas pontas e um garoto no meio. A mulher mais à esquerda veste um moletom cinza, o garoto no meio veste um moletom azul e a mulher mais à direita veste uma jaqueta de couro sintético vermelha. Com o título original inspirado em um poema de Victor Hugo de 1856, Demain des l'aubes [1] é uma película de 2017 do diretor tunisiano Lotfi Achour, conhecido por sua carreira na dramaturgia e premiado nas suas produções de curta-metragem. Sua estreia no cinema de longa-metragem foi marcada por este filme que, tendo o nome traduzido para português como “Esperança em Chamas” [2], tirado do inglês “Burning Hope”, tem uma proposta de fazer uma narrativa sobre o desenrolar dos fatos após a Revolução de Jasmim através da história de uma inesperada amizade entre as duas mulheres Zeineb (Doria Achour) e Elyssa (Anissa Daoud) e do adolescente Houssine (Achref BenYoussef). Os três têm as suas vidas cruzadas após um confronto policial que as mulheres sofrem por participarem das manifestações contra o regime, na mesma madrugada do dia 14 de janeiro de 2011 em que o presidente Ben Ali, governante do país durante 23 anos, fugia devido aos grandes protestos da população reivindicando mais direitos e democratização da sociedade tunisiana. Houssine as ajuda e após a separação dos três, um evento leva a uma intensa investigação policial dos acontecidos daquela noite. A Revolução de Jasmim, nome dado pelos tunisianos ao movimento de emancipação e de mudança no cenário político do país, foi a primeira das mobilizações que deu início à chamada “Primavera Árabe” no final de 2010 e início de 2011, presente nos países árabes do norte da África contra os governos ditatoriais, impulsionado por problemas econômicos, sociais, religiosos, liberdade de expressão e catalisados pelas redes sociais. Esse filme, lançado cinco anos após esses eventos, tenta representar através do olhar cinematográfico a percepção da Tunísia como um país que tem que lidar com os seus fantasmas pós-revolução e a sua frágil democracia. A Tunísia é o único país participante da Primavera Árabe que mantém o mais próximo da ideia de democracia após a Revolução, uma vez que outros países retrocederam com governos militares e golpes de estado, ou ainda lidam com guerras civis e as consequências bélicas das movimentações do início da década [3]. No filme, a descoberta das duas mulheres de que, naquela mesma noite, Houssine foi perseguido, espancado e sofreu violência sexual por parte dos policiais revela um desdobramento de desilusão em suas vidas, ao passo que a esperança daquela lembrança se esvai junto das perspectivas de mudança social e de cenário político. Através do olhar das mulheres – escolha cinematográfica que é uma tendência no movimento pós-revolucionário – o espectador é impelido a refletir e repensar os papéis na sociedade e os rumos que o país tomou após aquela fatídica noite que, apesar de parecer promissora, impulsionou em contrapartida um revisionismo histórico, crise econômica e a volta do conservadorismo, além das consequências das guerras e uma frágil democracia após os movimentos revolucionários. Larissa Karoline Graduanda em História (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2010. Notas: [1] “Amanhã, ao amanhecer” (1856) é um dos poemas mais famosos do escritor francês Victor Hugo (1802-1885). Escrito em homenagem à sua filha, Léopoldine Hugo, que havia morrido no ano anterior, o poema trata sobre uma visita ao seu túmulo e ponderações sobre a morte. [2] ACHOUR, Lotfi. Esperança em Chamas. 2017. Disponível em: Film Society. . acesso em 14 de fev. 202 [3] RAGHAVAN, Sudarsan. “Tunisia’s presidential election is set to test the Arab Spring’s only democracy”. The Washington Post, 13 de set. 2019. Disponível em:
- A periferia em Sabotage
Sabotage: O Maestro do Canão é mais do que apenas sobre um rapper, é sobre a periferia em si #PraCegoVer [ILUSTRAÇÃO]: À esquerda da imagem, Sabotage está em pé, de braços abertos e rosto inclinado para cima. Ao fundo, o céu escuro é iluminado pela lua, logo acima de Sabotage, e há casas de alvenaria, com seus tijolos à vista, em tons marrons e avermelhados. Fonte: Alexandre de Maio, "Sabotage: O Maestro do Canão" (2015). "Você quer saber o que é o rap nacional? Precisa ouvir Sabotage.” A frase de Paulo Miklos no documentário Sabotage: O Maestro do Canão (2015) é a síntese da obra que conta a vida, ascensão e morte de um dos maiores ícones do rap brasileiro, Mauro Mateus dos Santos Filho, o Sabotage, assassinado há 17 anos, em 24 de janeiro de 2003 na zona sul paulista. Mais que um documentário, o longa do diretor Ivan Vale Ferreira é um retrato do músico que era Sabota. Não há a preocupação em expor envolvimento do rapper com o tráfico antes de encontrar sua redenção na música. Em momento algum, a obra cai na armadilha de recorrer a um ambiente violento para facilitar a identificação do público. Não é como se isso fosse ignorado, só não tem relevância para a obra. Sabotage era muito mais do que ex traficante, bem como que a periferia é muito do que sua violência Em momento algum, porém, o documentário nega o ambiente que construiu o que foi Sabotage. Criado só pela mãe depois do abandono paterno, o irmão preso e depois morto, o envolvimento com o crime, tudo isso está ali, mas não é nada disso que fez do rapper o que ele era. Seu som o definia, não a violência. Da mesma forma acontece com a periferia. Seu som, suas cores, sua cultura, tudo isso é mais presente nas suas vielas, nas suas ruas do que o medo, mesmo que só o medo acabe na capa do Estadão. Dessa maneira, o artista era uma espécie de amálgama de seu ambiente. Sofria preconceito daqueles que o viam com um bandido, uma praga a ser exterminada, ao mesmo tempo em que era objeto de fascínio e estudo dos “descontruidões da zona sul”, que, já naquela época, viam-se de forma paternalista em relação aos ditos menos favorecidos. Sabotage era a arte da perifa, que tinha orgulho de ser perifa. Tal qual seu ambiente, vivia em um fogo cruzado de sinhá e sinhozinhos que, ou almejavam pela volta do tronco e da casa grande, ou visitavam a senzala com panos e curativos, mas mantendo os grilhões. 17 anos se passaram desde o assassinato de Sabotage. O estilo que ele revolucionou com apenas um álbum de estúdio, Rap é Compromisso (2000), se popularizou pagando o mesmo o preço que o samba, o funk. Para ir para as rádios, para os programas de domingo à tarde, tiveram que ser embranquecidos, elitizados, suavizados. Entretanto, vendo O Maestro do Canão, temos certeza de duas coisas: que Sabotage jamais iria aparecer no Faustão e que era exatamente isso que o fazia tão fantástico. Em cada depoimento, em cada fala, em cada instante a figura que vemos na tela é de resistência. Sabota é a perifa e a perifa é o Sabota. Rafael de Paula Graduando em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI
- Maternidade e cárcere: os direitos que prevalecem
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Ao centro da imagem, uma grávida em pé, em posição lateral, com as mãos envolvidas em sua barriga e cabeça encurvada à direita, no corredor de um presídio. Fonte: Agência Brasil. Com base nos dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o INFOPEN Mulheres [1], lançado em 2018, revela que cerca de 74% das mulheres encarceradas no Brasil são mães. Embora elas tenham de cumprir a privação da liberdade de locomoção e outras restrições, o direito de exercer a maternidade, apesar da condição em que se encontram, é uma de suas garantias. Isso é o que podemos extrair da leitura do artigo 3º da Lei de Execução Penal (n.º 7.210/1984): “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.” [2]. Ainda, como já reconhecido juridicamente, é direito da criança receber os devidos cuidados da mãe, pai e comunidade ao longo de seu desenvolvimento infanto-juvenil, sendo a família essencial neste processo. Por outro lado, para além do “papel”, o quanto vemos a efetividade dos direitos da mãe presa e da criança no sistema de Justiça brasileiro? O documentário Mães Livres, sob a direção de Miguel Angel Herrera (2019) – e fruto das pesquisas realizadas pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) [3] –, nos ajuda a compreender essa realidade, especialmente na Penitenciária Feminina de Pirajuí (SP). Mesmo com a introdução do Marco Legal da Primeira Infância em 2016, que fortaleceu a legitimidade da salvaguarda – de que mães, presas, passem a receber o mesmo tratamento de que mães não presas, e de que seus filhos igualmente tenham direito a este amparo familiar fundamental –, admitindo que a prisão preventiva pudesse ser substituída pela prisão domiciliar, caso a mulher seja gestante ou a criança tenha até 12 (doze) anos de idade [4]; e, além disso, tendo em vista a decisão do Supremo Tribunal Federal em 2018 [5], que concedeu Habeas Corpus coletivo a essas mulheres, percebe-se uma certa morosidade no reconhecimento desses direitos fundamentais, como o filme evidencia. A cultura punitivista brasileira, fundamentada nos sentimentos retributivistas da sociedade frente ao crime, instiga a manutenção da omissão e se reflete, por sua vez, no atual sistema, estendendo-se inclusive para presas e presos sem condenação. Parte da população prestigia o cenário de descaso, por ser o Brasil “o país da impunidade” (o que justificaria, para muitos, a permanência desta conjuntura). No contexto democrático, entende-se que a pena deve ter por função legítima prevenir delitos – e não ser a medida propriamente a violadora dos demais direitos dos condenados ou condenadas. Muito menos deveria a pena atingir aqueles não praticaram crimes; ou seja, nem as crianças, nem os demais familiares podem sofrer a represália sustentada pelo pensamento, que nos remete a períodos anteriores ao século XVIII – em que, antes do iluminismo, vigorava o voluntarismo ilimitado por parte do soberano, sendo as regras tecidas ao seu bel-prazer. O filme confronta a finalidade da prisão no Brasil e sua proporcionalidade em face de mulheres, presas, que são mães, e diante da instituição familiar, pilar da sociedade e direito de todos indiscriminadamente. Ressalta-se que a maioria cumpre a privação da liberdade por crimes patrimoniais e, em especial, por tráfico de drogas (62% delas, segundo os dados do INFOPEN Mulheres); põe-se em xeque, por conseguinte, se de fato a medida seja o caminho eficaz para a repressão do crime, ou se seria, por sua vez, a implementação de políticas públicas antidrogas, nas áreas da educação, saúde e segurança, o idôneo investimento social a ser efetuado pelo Estado. Diz Adriana, uma das detentas: “Eu sei que eles são pessoas da lei e eu não sou ninguém perante eles, mas eu preciso cuidar da minha mãe e dos meus filhos.” As entrevistadas em seus depoimentos demonstram o desejo de serem vistas como pessoas, e, desse modo, de terem os seus direitos correspondidos. Rebeca O. Santos Graduanda em Direito (FD-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Notas: [1] O preceito vale, igualmente, para as presas provisórias; ou seja, àquelas que não foram condenadas à pena privativa de liberdade em sentença transitada em julgado. [2] Disponível em: . Acesso em: 11/12/2019. [3] O projeto Mães Livres se ocupou em promover assistência jurídica às mães presas na Penitenciária Feminina de Pirajuí, interior de São Paulo, diante das garantias conquistadas e reforçadas recentemente. O relatório final do projeto pode ser encontrado neste site: . Acesso em: 11/12/2019. [4] O Marco Legal da Primeira Infância alterou, dentre outros dispositivos legais, o artigo 318 do Código de Processo Penal. Alargaram-se as hipóteses para a conversão da pena preventiva para domiciliar, inclusive para o pai, “caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.” (inciso VI). Disponível em: . Acesso em: 11/12/2019. [5] A prática de crimes mediante violência ou grave ameaça, bem como crimes contra seu filho ou dependente, e situações excepcionais limitam a aplicação do entendimento, de maneira que “a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência” é a regra a ser adotada. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=370152>. Acesso em: 11/12/2019.
- Se está na internet, deve ser verdade
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: A imagem, em tons azulados, apresenta em zoom uma barra de endereço eletrônico com os caracteres "http://www.". Fonte da imagem: TargetHost. “Um adjetivo relacionado ou evidenciado por circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou crenças pessoais” [1], assim é definido o conceito da palavra pós-verdade, que ganhou o mundo em 2016 após ser concebida como a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford. A pós-verdade trabalha justamente com o que o ser humano tem de melhor, os sentimentos e suas percepções pessoais de mundo, no entanto, nem sempre elas estão corretas, e se não forem postas em dúvida podem levar ao erro justamente pelo alto grau de confiança que temos em nós mesmos. Hoax (2016) é um curta metragem do diretor Thiago Amaral Ribeiro produzido com menos de R$ 100, que discute o papel que nossas convicções ocupam no vazio do pensamento crítico e da racionalidade, o sensacionalismo da mídia e a rapidez com que fluem as informações nas redes sociais. Esse vazio da crítica racional pode ser entendido principalmente pela falta de atenção com os vídeos recebidos, revelando, talvez, uma incapacidade de buscar por fontes ou escassez de alguma forma de educação científica que permita ao receptor buscar por seus destinatários primeiros. As convicções podem ser entendidas por aquilo que somos condicionados a pensar através do que a mídia dispõe ou aquilo que temos enquanto formação pessoal, ocupando, então, o papel do fato e do relato na falta dele. O desenlace para a história se dá quando um grupo de amigos decide gravar um vídeo com a câmera do celular em que um deles é assassinado, o vídeo, no entanto, serviria apenas para ser mostrado como uma brincadeira ou mesmo atrair olhares curiosos sobre a película pouco produzida. Um dos amigos decide compartilhar o vídeo, e ele viraliza nas redes sociais. As redes sociais desempenham um papel fundamental na história, pois é o principal canal de divulgação das imagens sem cuidado algum. Ainda que as pessoas duvidassem da veracidade do vídeo, o estrago já estava feito, pois as imagens estavam espalhadas por toda a internet e todos se perguntavam quem seria o assassino do jovem. A baixa qualidade do vídeo também é fundamental no enredo, visto que ela que ajuda a dar maior veracidade às imagens e suscitar certa originalidade do vídeo. Desta forma, as pessoas especulam que se fosse falso, a qualidade seria maior e o vídeo não teria uma atuação tão natural quanto é, ou seja, seriam utilizados atores mais profissionais, um local mais previsível e as imagens teriam maior grau de tratamento fotográfico. A mídia também ajuda a validar as especulações através das inúmeras imagens reproduzidas na televisão, que alimentam o imaginário e as crenças pessoais dos telespectadores. A vida dos jovens torna-se infernal devido a exposição das imagens e o grau que de repercussão que as tornam conhecida em todo o território nacional. A favela em que eles moram também se torna alvo de inúmeras invasões e as pessoas da periferia passam a sofrer violências devido a exposição. Com a grande repercussão, os jovens decidem desculpar-se e alertam a todas as autoridades que tudo não passava de uma brincadeira. Porém, muitos são aqueles que já possuem opinião formada acerca dos boatos, e preferem agarrar-se às suas próprias convicções pessoais tornando a gravação em uma verdade quase que consolidada por conta da visibilidade que se deu ao vídeo publicado. Ademais, podemos notar claramente que os contextos em que se intensificam ainda mais a relação binária entre o bem o mal, o preto e o branco, se dá devido a geografia do local, e a cor dos jovens. Portanto, as crenças e emoções são imprescindíveis no filme, que nos alerta acerca da difusão de informações duvidosas, do sensacionalismo midiático e do pensamento crítico em relação ao fato e a mentira. Nota [1] GENESINI, Silvio. A pós verdade é uma notícia falsa. São Paulo: Revista USP, n. 116, p. 45-58, janeiro/fevereiro/março 2018. Referências Bibliográficas HOAX. Direção: Thiago Amaral Ribeiro. In: Porta Curtas. 23 minutos, colorido. Disponível em: . Acesso em: 30 de janeiro de 2020. Paulo Ricardo da Silva Borges Batista Graduando em Letras - Português/Espanhol (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI
- A diversidade em cartaz em Hollywood
#ParaCegoVer [Fotografia]: Duas imagens lado a lado divididas por uma linha branca, a primeira é de uma cena do filme "Us" (Jordan Peele, 2019) que mostra a personagem Zora Wilson (Shahadi Wright) encarando a câmera com uma expressão boquiaberta e olhos arregalados olhando para algo. A segunda é do filme "Crazy Rich Asians" (Jon M. Chu, 2018), na qual a personagem principal Rachel Chu (Constance Wu) aparece centralizada na imagem com um vestido de festa, e com várias pessoas com roupa de gala ao seu redor. Fonte imagem 1: https://www.thefourohfive.com/film/article/us-review-what-happens-when-our-shadows-run-free-and-what-the-hell-is-with-the-rabbits-155 Fonte imagem 2: https://www.smithsonianmag.com/smart-news/constance-wus-crazy-rich-asians-dress-coming-smithsonian-180972207/ Desde a sua criação, o cinema reúne pessoas e, como a arte, funciona como catalisador da expressão humana. Hollywood contribuiu para que o cinema fosse difundido no mundo através das grandes distribuidoras e estúdios. Sua hegemonia é notável, visto que grande parte dos filmes que dão lucros e são conhecidos pelo grande público vêm dela, os chamados "filmes comerciais". Apesar disso, essa indústria ainda é gerida por pessoas brancas, seja produzindo ou atuando. Isso resulta na existência de muitas polêmicas envolvendo whitewashing, termo utilizado para se referir a casos em que atores/atrizes brancos/as interpretam personagens de outras etnias, que reforçam muitas questões problemáticas acerca de representatividade - ou da falta dela. Por outro lado, a produção de filmes como “Crazy Rich Asians” (2018, Jon M. Chu) e “Us” (2019, Jordan Peele) atestam certa mudança nesse quadro. O primeiro filme, Crazy Rich Asians, é uma comédia que tem um elenco inteiramente asiático-americano e acompanha a professora de economia da NYU, Rachel Chu (Constance Wu) que viaja para Singapura, cidade natal de seu namorado, Nicholas Yong (Henry Golding), para acompanhá-lo no mega casamento de seu melhor amigo – e conhecer sua família. O segundo filme, Us, é um terror que apresenta uma família afro-americana como protagonista. Na trama, Adelaide (Lupita Nyong’o) e Gabe (Winston Duke) levam a família para passar um fim de semana na praia e descansar. Eles começam a aproveitar o ensolarado local, mas a chegada de um grupo misterioso muda tudo e a família se torna refém de seres com aparências iguais às suas. Os dois filmes foram aclamados pela crítica e pelo público e tiveram bons números de bilheteria. Isso é importante pois mostra que o público está aberto à diversidade nos filmes e em diferentes gêneros. Via Vogue Brasil, a protagonista de Crazy Rich Asians, Constance Wu, destaca que, para ela, um ponto importante é que o filme mostra a cultura asiática num cenário contemporâneo ao invés de partir para as dinastias chinesas ancestrais – como visto exaustivamente em várias sequências protagonizadas por Jackie Chan e em filmes como 'A Grande Muralha' (Zhang Yimou, 2015), por exemplo. “Isso aproxima as pessoas. É um filme que representa a inclusão”. Além disso, os dois filmes contam com elementos culturais importantes para diferentes grupos étnicos, representando a ocupação de espaços que tradicionalmente ou se apropriaram e distorceram muitas de suas tradições e traços culturais, ou simplesmente não os aceitaram. Em uma entrevista no Upright Citizens Brigade Theatre, Peele reforça esse sentimento ao dizer "Uma das melhores e maiores peças dessa história, é sentir que somos nós desta vez - um renascimento aconteceu e provou que os mitos sobre a representatividade na indústria são falsos". Essas produções são importantes para legitimar seu espaço na indústria e deixar de lado, mesmo que ainda timidamente, narrativas opressoras e de grupos dominantes. São passos pequenos para essa indústria, mas que podem inspirar e reforçar a luta de milhares de pessoas ao redor do mundo contra a hegemonia branca no cinema. Filmes Utilizados: Us (Jordan Peele, 2019); Crazy Rich Asians (Jon M. Chu, 2018). Mateus Pontes Ruivo Graduando em Educomunicação (ECA/USP) bolsista do Projeto CineGRI (2019-2020). #Identidade #CulturaAfroAmericana #CulturaAsiatica #Hollywood #Representatividade.
- O uso da tecnologia como luta e resistência
#PraCegoVer [Fotografia]: Duas pessoas, um homem à esquerda levemente desfocado, e uma mulher à direita em primeiro plano. Ele está olhando na direção dela, veste colares feitos com sementes variadas e um cocar na cabeça com penas vermelhas e uma pena azul no centro. A mulher está com o cabelo preso, com um celular na mão, e o olha fixamente. Os dois estão com os rostos pintados com urucum. Eles estão em uma paisagem agreste, em um dia ensolarado. A cultura se dá por um conjunto de ações e repertórios sociais que conectam tanto a arte, as crenças e os comportamentos das pessoas em seu convívio social. Ainda que cultura possua definições tão amplas e particularizadas em cada território, continua sendo presente a estigmatização contra os hábitos culturais das populações de povos originários. No brasil, os povos indígenas hoje compõem 0,47% da população brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010)¹. Dentro deste grupo, há grande diferenças: culturais, de crenças e linguísticas, ao contrário da ideia de que são um bloco único, como é difundido na sociedade brasileira. Frases como “índio não pode usar celular” ou “índios estão parados no tempo” não compreendem as transformações constantes que eles vivenciam, assim como esse pensamento avalia de maneira impositiva a métrica do que seria uma civilização ideal. A partir deste panorama que nasce o documentário “Indígenas Digitais”, que mostra como várias etnias estão utilizando a tecnologia, e como ela se tornou parte de suas culturas. No filme, vemos integrantes de diferentes linhagens relatarem como celulares, computadores e, principalmente, a internet, são ferramentas de muita importância na busca de melhorias para as comunidades. Essas falas também demonstram as relações destas pessoas com o mundo globalizado, e com a conjuntura nacional do fortalecimento de uma retórica racista, a qual falaciosamente ressalta que os indígenas não são “produtivos". A atual política estabelecida pelo governo federal, caracterizada pelo avanço do neoliberalismo, foi legitimada por discursos de combate aos povos indígenas e quilombolas. Hoje, muitas terras, preservadas por diferentes etnias, têm sido cobiçadas pelo potencial de exploração mineral e agrária. Neste cenário difícil, ainda em um contexto de evolução constante da tecnologia, a busca por utilizar esta importante ferramenta para o fomento de garantias de direitos das populações indígenas e, inclusive, no combate do preconceito que deseja a exclusão delas no ciberespaço, é fundamental. O filme demonstra como a tecnologia agora não é apenas um recurso "externo", mas sim parte integral de suas culturas. Esta situação pode ser compreendida ainda melhor na fala da Cacique Jamapoty, que diz: “a gente precisa de ter essa tecnologia para falar para o mundo o que nós queremos, queremos também preservar, ter uma terra demarcada, ter uma saúde de qualidade, mas sempre observando que nós, povo indígenas, queremos viver nosso habitat, com a nossa liberdade, com o jeito de vida nosso.” É explícita a adequação e necessidades dos indígenas frente a era digital que se instaura diariamente. A sociedade brasileira ainda irá se surpreender com a potencialidade que vem pintada de urucum. ¹IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2000. Disponível em Rafael Bento Graduando em Ciências Sociais (USP) e bolsista do Projeto CineGRI 2019/2020. #direitoaterra #direitoindigena #culturasindigenas #respeitoadiversidade
- A resistência de quem vive como o alvo
A História positivista, como a que é propagada no ensino formal, é repleta de apagamentos em relação ao povo negro. Sua cultura, auto-estima, força, religião e humanidade foram e infelizmente persistem sendo aspectos muito negligenciados há séculos em decorrência da visão eurocêntrica que submeteu esta população a anos de escravização e genocídio. Isto concomitou em uma sociedade em que o racismo estrutural está institucionalizado, e como tal dificulta que pessoas negras se tornem e sejam representadas como cientistas, heróis ou guerreiros. Crianças negras crescem sem referências positivas, entravando a construção de uma autoestima saudável, autonomia e protagonismo. Considerando a hegemonia branca da indústria Hollywoodiana das últimas décadas, um filme como o Pantera Negra (2018), dirigido e com o elenco composto majoritariamente por negros, demonstra muita resistência, representatividade e resgate da auto-estima daqueles que sofreram com tanta displicência. O filme Pantera negra (2018) faz alusão ao movimento dos Panteras Negras - movimento radical na luta por direitos civis como liberdade, moradia, educação, fim da violência policial e encarceramento em massa da população negra. Em meio a efervescência deste movimento em 1960 - Stan Lee criou os quadrinhos que basearam o filme - o personagem T'Challa (Chadwick Boseman) é a personificação de um herói que protege o povo de Wakanda - e sua cultura. Ele luta por dignidade e boas condições de vida para seu povo. Este, envolve-se em diversas batalhas para proteger a população da tirania, combates para reconquistar seu lugar de direito, garantido através de sua ancestralidade e uma luta individual para para descobrir-se e auto-afirmar-se. Além dele, sua irmã Shuri é uma cientista genial (Letitia Wright) e Okoye (Danai Guarira), uma exímia guerreira que o ajuda a proteger Wakanda. Agora as meninas negras podem se inspirar em Shuri ou Okoye, assim como os garotos podem fazer o mesmo com T'challa. Negros podem ser cientistas, heróis, guerreiros e o que mais quiserem. Que a luta dos Panteras negras não seja esquecida, nem o que eles alcançaram. Que persistam espaços para que produções como esta do universo Marvel possam existir e se multiplicarem. A resistência que inspirou T'Challa, está presente nesta população. Este vem sendo um momento que o cinema, e tantas outras instâncias também serão espaços de negritude. Filme utilizado: Pantera Negra, 2018 (Ryan Coogler). Karolina da Silva Ávila, Graduanda de Bacharel em Geografia (FFLCH/USP), Bolsista do projeto CineGRI 2019/2020 #BlackPower #BlackPanther #Resistência #Identidade #DireitosCivis
- Pacificação ou repressão: às UPPs e a cultura periférica
Fonte: blahzinga #PraCegoVer [Fotografia]: Uma parede de tijolos de diferentes tons de laranja onde está pichado a frase "CADÊ O AMARILDO" em letras de forma. No centro da imagem há um cano de plástico branco em formato da letra "L" ao contrário exposto. No canto superior direito há uma janela com grades aberta, onde se vê um homem negro em pé. A casa dessa janela também é feita de tijolos com diferentes tons de laranja. Abaixo da janela há uma escada. Em julho de 2013, Amarildo Dias de Souza, um ajudante de pedreiro e morador da Favela da Rocinha, foi sequestrado e morto por policiais militares integrantes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Seu assassinato foi faísca para inúmeras manifestações em 2013, que denunciavam a repressão abusiva do Estado e o fracasso das UPPs. O caso de Amarildo tornou-se inspiração para o filme O Estopim (Mac Niven, 2014), um documentário filmado na Rocinha, que conta com relatos da viúva, Elizabeth Gomes da Silva, e do amigo de Amarildo e líder comunitário, Carlos Eduardo Barbosa, que compartilha sua vivência própria com a violência policial, a invasão de sua casa, as ameaças que sofreu pela polícia e a realidade das UPPs. O documentário possui um evidente clima pesado, com pouca cores, combinado ao céu nublado do Rio de Janeiro, a diversas vistas de casas da Rocinha, vídeos em tons escuros e alaranjados atravessando as ruas da comunidade, filmagens de segurança, áudios internos da polícia, fortes cenas de tortura e declarações dadas pelos moradores da favela, muitos apreensivos ao abordar o tema. Outros depoimentos servem para compor a vida de moradores de comunidades onde há a presença de Unidades de Polícia Pacificadora. O projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro, tinha, teoricamente, como objetivo a ocupação de áreas com altas taxas de criminalidade e grande presença de facções criminosas. Seu protocolo correspondia ao estabelecimento de sedes policiais permanentes para suposta proteção comunitária. Em muitas comunidades, as UPPs tiveram efeito contrário do que era intencionado na teoria. Rocinha, Complexo do Alemão e Complexo da Penha, por exemplo, tiverem seus confrontos entre a polícia e traficantes intensificados, que instalaram um constante clima de terror entre os moradores, amedrontados com o aumento dos tiroteios e da brutalidade policial. A proposta, encabeçada pelo então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que posteriormente foi preso por corrupção, tinha a intenção de declarar sua clara priorização da segurança pública, preparar a capital do estado para o recebimento das Olimpíadas e restringir o que é visto por muitos políticos como "degradação", a cultura periférica. O início das instalações das UPPs marcaram igualmente a ampliação da limitação de bailes funks, parte essencial da cultura e lazer do jovem da periferia. Ao mesmo tempo, houve o incentivo a sambas pagos e, consequentemente, frequentados ou por um público de classe média, que reside do lado de fora das favelas cariocas, ou por turistas, encantados com a cultura "exótica" (!) brasileira. Áreas ocupadas por UPPs passaram não apenas a ter em seu cotidiano a presença policial, mas também a ter seus eventos sujeitos à aprovação de autoridade estatal. Essa nova política sócio-cultural é digna de, no mínimo, questionamento quanto a sua seletividade na escolha do destino do patrocínio de lazer e cultura. Haveria uma preferência por eventos mais "palatáveis" turisticamente? Há, por trás da escolha, um julgamento moral? Quais critérios são usados para consentir um evento cultural? Por que o Estado insiste em conectar funk e , em um arco mais amplo, a cultura periférica com o tráfico de drogas ou a criminalidade em um geral? Referências: NIVEN Mac. O Estopim. 2014. Disponível em: . Acesso em: 30 de janeiro de 2020. Critica de filme | O Estopim. Disponível em: . Acesso em: 04 de fevereiro de 2020. Mariana Ramos, Graduanda em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020. #violênciapolicial #ondeestáAmarildo? #funk #moralismo #lazerperiférico
- Carnaval, a festa da periferia
Carnaval 2016: Desfile da Mangueira (Foto: Daniel Collyer/Hipermídia Comunicação) #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Há uma plateia ao fundo da imagem segurando bandeiras diversas e de pé assistindo ao desfile. Ao fundo, à esquerda há uma pessoa fantasiada com adornos vermelhos e com balões de corações que flutuam. No centro e à esquerda, há um mestre-sala com uma fantasia branca e dourada com braços abertos e segurando a bandeira da escola de samba com a mão esquerda. No centro, à direita, está a porta-bandeira com uma fantasiada com um vestido branco com detalhes dourados e a borda do vestido com plumas amarelas. Ela também está com braços abertos e com a mão direita segura a bandeira da escola de samba. Tanto o mestre-sala quanto a porta-bandeira estão cantando. Que o carnaval é a maior festa do planeta, isso todo mundo já sabe. O que pouco se conhece, infelizmente, são os bastidores desse grande espetáculo. Apesar de ser um tema recorrente em diversas manifestações artísticas, no cinema, o carnaval dificilmente é abordado a partir da perspectiva de quem o produz, ou seja, da periferia. No Brasil, um dos grandes responsáveis por retratar o carnaval a partir desse olhar foi o cineasta Carlos Diegues. Conservando uma das principais características do Cinema Novo, de uma forma ou de outra, as obras de Diegues que têm o carnaval como objeto principal ou simples pano de fundo também acabam por escancarar questões sociais pouco discutidas. Em seu filme Orfeu (Carlos Diegues, 1999), o diretor usa como cenário para a trama a preparação que toda a comunidade do fictício “Morro da Carioca” faz para o grande desfile de carnaval. Mesmo passando por inúmeras dificuldades, tal como a repressão policial. É possível ver que, mais do que festa “para gringo ver”, o carnaval tornou-se um grande elemento da cultura da periferia. Como o maior palco para a folia no país, o Rio de Janeiro tem suas maiores escolas de samba com nomes homenageando bairros da zona norte e da baixada fluminense, como a “Estação Primeira de Mangueira”, vencedora do grande desfile de 2019. Além de Orfeu, que é um grande clássico do diretor, Diegues ainda tem muitas outras obras que buscam abordar o carnaval como contexto para inúmeros temas. Uma recente produção de que se pode falar, é o documentário Favela Gay (2013). Nele, através de entrevistas a diversas figuras da comunidade LGBT que vivem em favelas do Rio de Janeiro, é traçado um panorama sobre a situação desse grupo duplamente invisibilizado. A partir desse objeto principal, acaba sendo apresentado pelos entrevistados a participação da comunidade LGBT de periferia no carnaval. Mais do que uma simples aparição durante a festa, no documentário se fala sobre uma necessidade da população LGBT para a existência do carnaval. A liberdade em relação à sexualidade e sua performance, somada ao espírito alegre, característico da população residente das favelas atuais, são como a alma do clima de carnaval e, sem esses elementos, a festa não seria a mesma. Carlos Diegues, famoso por fazer filmes que abordam questões sociais latentes no Brasil, consegue, através dessas duas obras, falar sobre o que o favelado tem de melhor sem deixar de comentar as dificuldades que essa camada da população enfrenta. Os quilombos que existiam no Brasil durante a época da escravidão, além de um lugar de resistência e união da população negra, eram também o único lugar possível de expressão da cultura dos povos africanos. As favelas e periferias de hoje em dia traçam um caminho parecido: o lugar abandonado pelo Estado resiste produzindo sua arte e cultura. O carnaval é um dos maiores exemplos dessa construção. A grande diferença é que hoje em dia, o que era apagado e suprimido, é aplaudido. No entanto, essa obra prima produzida pela periferia ainda não é devidamente reconhecida como produto de sua autoria. Referências: Cacá Diegues toma posse como imortal da Academia Brasileira de Letras. G1, 2019. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020 às 17:47. CARNAVAL, Mais. Enredos 2016 || Inocentes de Belford Roxo - Cacá Diegues - Retratos de Um Brasil em Cena. Youtube, 2015. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020 às 18:32 KREUTZ, Katia. Cinema Novo. Academia Internacional de Cinema (AIC), 2018. Disponível em: . Acesso em: 05 de fevereiro de 2020 às 1:55. MÓR, Samira. Marcas de brasilidade na obra cinematográfica Orfeu, de Cacá Diegues. UFJF, 2011. Disponível em: . Acesso em: 02 de fevereiro de 2020 às 18:08. Victoria Freitas, Graduanda em Letras, Português/Espanhol (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020. #Carnaval #Cinema #LGBT #Favela #Periferia
- Os povos indígenas são e(feitos) de sonhos
Fonte da Imagem: "O Globo" #PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: À esquerda, um homem semi-nu em pé de perfil, segurando um chapéu de palha em sua mão esquerda, olha para a mulher a sua frente, à direita da imagem. A mulher veste um longo vestido vermelho que possui detalhes em marrom e em sua cabeça um lenço vermelho de grande extensão ao vento. Ela está de braços abertos e seu rosto está inclinado em direção ao homem. Ao fundo há um céu azul sem nuvens, e os dois estão descalços sobre um solo arenoso. Idealizadas e enjauladas por uma história escrita por seus colonizadores, às várias etnias decorrentes do o continente Americano travam a mais de 600 anos uma trajetória épica em busca de sobrevivência cultural, social e política contra o vasto vento forte de seu apagamento estrategicamente planejado. Do erro europeu ao chegar no Caribe em suas caravelas faraônicas e generalizar as inúmeras tribos nativas da região como “índios", pois acreditavam ter chegado às “Índias”, passando pelo processo de escravidão e catequização desses povos até o mítico genocídio completo de todos os descendentes dos clãs existentes surgiu um presente pouco falado e muito sugerido. Foi nesse contexto que o historiador Forrest Hylton e o cineasta Ciro Guerra viram a necessidade de dar luz, câmera e voz a Colômbia ancestral. É com a frase “É um lembrete ao mundo de que ainda estamos vivos” dita por Sergio Kohen Epieyú pütchipü'ü, autoridade que resolve os conflitos da tribo Wayúu, que habita a região de Guajira na Colômbia e parte da Venezuela, através de negociações que o documentário “Espíritus Guerreiros”de Forrest Hylton começa. Daqui em diante somos guiados pela narração feita por outros membros da tribo a respeito da chegada dos espanhóis a Guajira e dos costumes de seu povo. Já em “Pássaros de Verão” o cineasta Ciro Guerra também nos conta uma história baseada em fatos reais sobre dois “clãns” desse grupo indígena, em uma Colômbia entre os anos de 60 e 80, que conservam as suas tradições mas tem um diferencial, são ligados ao tráfico de Marijuana. Foi justamente nesse período que o comércio da erva explodiu do país em direção a outras regiões do mundo, ajudando tanto o desenvolvimento econômico quanto o narcotráfico. O conflito do filme se inicia quando o membro de uma das famílias se apaixona pela filha da matriarca de um grupo rival. Aliás, esse é um dos pontos interessantes da sociedade Wayúu que também é ressaltado pelo documentário, a autoridade natural da mulher, que a torna administradora dos bens patrimoniais e da parte espiritual do clã, guiando seus “filhos” quando existe algum sonho ou outra coisa que os perturbe. Apesar da união dessas famílias gerarem ofensas que posteriormente serão reparadas com sangue é a transgressão da tradição de um dos valores da comunidade que gera a grande discussões imposta. A partir do momento em que o estrangeiro se interessa por uma planta sagrada e alucinógena da região a degradação da comunidade se inicia e o rito ligado à planta ganha a finalidade de prazer momentâneo e comercial. Assim, após essa transformação de valores da comunidade o “outro/ não nativo” sai momentaneamente de cena e dá lugar a destruição dos membros do grupo indígena entre si. Essas duas filmografias retratam uma comunidade que é vítima do processo de colonização e de interesses mercantis que prezam o esquecimento do passado. O desvio do discurso eurocêntrico que instaura o exotismo e uma recriação caricata dos povos originários da América e que impregnam o imaginário de países, pessoas e livros faz de ambas as produções um grande acerto na história do cinema latino americano e mundial. É necessário rever para entender e fazer permanecer esse legado que também é nosso. Kelly Barbosa, Graduanda em Letras, Português/Espanhol (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020. #Indígenas #TriboWayúu #Resistência #FilmografiaLatinoAmericana
- Cicatrizes, marcas e lutas: a trajetória de sobreviventes
#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Foto com tom avermelhado de uma parede. O lado esquerdo tem 4 janelas, na janela do canto inferior esquerdo há um cartaz com a frase “posso me identificar?” . Ao lado da última janela, no canto inferior direito há a mensagem projetada “#FavelaQuerPaz” em letras garrafais brancas que se sobrepõe à uma cruz pregada. Fonte: Cleber Araujo e Cia. Semearte. São Paulo, 1 de dezembro de 2019. A data marca uma ação desastrosa promovida pela Polícia Militar em Paraisópolis, comunidade da capital paulista. De acordo com moradores, os policiais fecharam todas as ruas e usaram munições químicas como forma de reprimir o baile funk que acontecia no local, gerando tumulto e fazendo com que nove jovens, entre 14 e 23 anos, fossem pisoteados e mortos. Durante toda a repercussão e cobertura do caso foi comum observar diversos comentários aprovando a ação dos militares, muitos desses se apoiando nos argumentos de que esses bailes, supostamente, promovem a criminalidade, o tráfico e degeneração dos jovens. Esse tipo de pensamento apenas evidencia todo o preconceito enfrentado pelo funk e todas as demais formas de manifestações culturais vindas da periferia. Branco sai, preto fica. A frase que dá nome ao filme de Adirley Queirós (2015) foi dita por um policial no ano de 1986, numa ação que tinha o intuito de acabar com o baile realizado em Ceilândia - DF. O resultado da invasão: um jovem paraplégico e outro, com a perna amputada, ambos negros e moradores da periferia. O primeiro, vítima de um tiro nas costas e o segundo, brutalmente atropelado e esmagado por um cavalo da tropa de choque. As duas vítimas da violência do Estado brasileiro protagonizam o longa-metragem, que mistura os gêneros de documentário e ficção científica. O filme segue três linhas do tempo, se move ao passado para narrar todos os acontecimentos reais na noite da tragédia, se passa em um presente distópico dominado por um Estado autoritário e dá indícios de um futuro ainda mais perturbador. “Marquim” (Marquim do Tropa) começa por descrever todo o contexto do baile e a sua relação com a comunidade a partir de um relato pessoal extremamente detalhado e sentimental. Sua performance impressiona, principalmente se levarmos em consideração que esse foi seu primeiro trabalho como ator. “Sartana” (Dilmar Durães), que perdeu a perna no ocorrido, também se destaca tanto no tom documental, quanto na dramaticidade exigida pelo roteiro ficcional da produção. “Dimas Crava lanças” (Schokito) é representado com um agente vindo do futuro com a missão de coletar provas dos crimes cometidos pelos policiais no fatídico dia como forma de processar o Estado brasileiro criminalmente. Já “Marquim” e “Sartana” passam a desenvolver um plano em conjunto para atacar a capital Brasília e derrubar o sistema vigente. Diversas críticas às políticas do Estado são observadas durante o decorrer do filme, a “Policia do bem estar social”, representada como extremamente controladora e invasiva, pode ser interpretada como uma alusão aos longos anos de governos social-democratas no país, que nunca tomaram atitudes concretas para combater a violência policial contra negros e pobres. O futuro distópico é representado como um governo ainda mais autoritário, gerido por uma “aliança cristã”, um possível paralelo com a bancada evangélica do congresso brasileiro que defende pautas de segurança pública nocivas para as populações periféricas. O filme evidencia que o contexto de repressão à cultura periférica é algo histórico e sistêmico. Nosso contexto atual permite afirmar que essa dinâmica permanece, muitas vezes, com amparo de parte da sociedade e como política de Estado. O longa também nos permite enxergar a importância de atitudes concretas e a luta conjunta pela defesa da cultura e todas as formas de manifestação vindas da periferia. Referências HENRIQUE, Alfredo. “Veja quem são os jovens mortos em Paraisópolis”. Agora - São Paulo, 2019. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/12/veja-quem-sao-os-jovens-mortos-em-paraisopolis.shtml. Acesso em: 05/01/2020. “O governo Dilma é extremamente repressivo”. Carta Capital, 2015. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/o-governo-dilma-e-extremamente-repressivo-4045/. Acesso em: 05/01/2020. OWADA, Maurício. “Branco Sai, Preto Fica e a Ficção Científica. Revista Moviment, 2017. Disponível em: https://revistamoviement.net/branco-sai-preto-fica-e-a-fic%C3%A7%C3%A3o-cient%C3%ADfica-8564f4f29736. Acesso em: 05/01/2020. Yan Carvalho Graduando em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI #resistência #cultura #periferia #funk #favela
- As velhas-novas políticas agrícolas
A (des)produção alimentar “Governo aprova registro de mais 51 agrotóxicos, totalizando 262 no ano” [1]. No dia 22 de julho de 2019, grande parte dos jornais brasileiros veiculou manchetes parecidas com essa entre os meios de comunicação, as quais assustaram a população em geral. Não é todo dia que se aprova mais 51 tipos de veneno em sua alimentação. O assunto é muito bem trabalhado nos documentários O Veneno Está na Mesa I (2011) e O Veneno Está na Mesa II (2014), ambos de Silvio Tendler. Esses mostram a intensificação da produção agrícola no Brasil devido ao crescimento da exportação desses produtos motivado principalmente pelo mercado internacional [2], às respectivas consequências ambientais e sociais ocasionadas e os novos métodos de cultivo sem a utilização de produtos químicos, que surgiram mais recentemente. Em âmbito natural, o documentário aborda os danos trazidos ao meio ambiente em razão do uso dos agrotóxicos. O agricultor Fernando Ataliba relata que após 50 anos deste consumo nas lavouras, justificado como sendo um defensivo agrícola que controla pragas e aumenta a produção dos alimentos, a natureza foi progressivamente devastada: houve desde a perda de mananciais, da diversidade biótica e da fertilidade do solo, até a contaminação agressiva do solo e da água. O solo, como elemento vivo, finito na escala do homem e um dos principais influenciadores na agricultura, é um dos mais atingidos com essa intensificação. O ato acontece devido ao uso intensivo da terra e à contaminação por produtos químicos, o que ocasiona a perda de nutrientes e o sua consequente morte. O solo, produto da ação de cinco fatores naturais (material de origem, relevo, clima, organismos e tempo), demora em média 400 anos para se produzir 1 cm [3]. Em contrapartida, pode ser destruído em menos de 40 anos, a partir das práticas relatadas no documentário. O cultivo com agrotóxicos começou a se espalhar pelo mundo na década de 1980, contribuindo, desde então, apenas para a dinâmica dos agentes econômicos no mercado internacional em face da destruição ambiental e doenças sociais que se acentuaram. Desde 2008, o Brasil disputa com os Estados Unidos o topo dos maiores consumidores de agrotóxico do mundo. Em 2010, cerca de 92% desses produtos eram controlados por empresas internacionais vindas de diversos países como a Suíça, Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Israel [4]. Segundo a geógrafa e professora da USP Larissa Mies Bombardi, na série produzida por Bob Fernandes e disponibilizado no Youtube [5], o Brasil aprovava em média o uso de 136 agrotóxicos por ano (entre 2008 e 2015). Entre 2016, 2017 e 2018, foram utilizados em média 450 novos tipos de agrotóxicos. Até julho de 2019, já foram aprovados 262 tipos. Dos liberados nas últimas semanas do mês de junho, 33% são classificados pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), no nível 1, o que indica ser muito tóxicos para a saúde humana. Segundo o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), 52% dos mesmos são nível 2, ou seja, são muito perigosos para o meio ambiente. Apesar da expansão da comercialização desses agrotóxicos por fatores econômicos, de modo que seu uso se torne lucrativamente rentável ao produtor, algumas pessoas ainda buscam métodos ecologicamente sustentáveis para a produção de seus alimentos. O documentário francês Demain (2015) dirigido por Cyril Dion e Mélanie Laurent, dá a volta ao mundo mostrando projetos, desde agricultura urbana à agroecologia no campo, que visam cuidar do meio ambiente de maneira a preservá-lo. O “demain” (amanhã, em português) precisa ser responsável, preservativo e saudável para a natureza e consequentemente para a vida humana. Raiane Forti Graduanda em Geografia (USP) e Bolsista do Projeto CineGRI Nota [1] , acesso em 05/08/2019, as 19:44. [2] BOMBARDI, Larissa Mies. A intoxicação por agrotóxicos no Brasil e a violação dos direitos humanos. Direitos humano no Brasil 2011: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. [3] , acesso em 06/08/2019, as 08:43. [4] BOMBARDI, Larissa Mies. A intoxicação por agrotóxicos no Brasil e a violação dos direitos humanos. Direitos humano no Brasil 2011: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. [5] Acesso em: 06/08/2019, as 09:04. Referência filmes: O veneno está na mesa: https://www.youtube.com/watch?time_continue=591&v=8RVAgD44AGg O veneno está na mesa 2: https://www.youtube.com/watch?v=fyvoKljtvG4 Amanhã: https://vimeo.com/251289725