"Navio negreiro" era o nome dado aos navios de carga para transporte de escravos, especialmente os escravos africanos. Entre fins do século XV e o século XIX, mais de 12 milhões de africanos foram embarcados de forma involuntária rumo ao continente americano. O Brasil foi o maior receptor do tráfico, ultrapassando a casa dos quatro milhões de indivíduos ingressos (40% de todos africanos transportados no período), acarretando assim consequências diretas para a formação do povo brasileiro e posição dos negros na sociedade.
Steven Spielberg, premiado cineasta e diretor de filmes aclamados, como a Lista de Schindler (1993), tentou retratar as condições subumanas nos porões dos navios negreiros no filme Amistad (1997). Na minha percepção, Spielberg pecou ao engrandecer grandes figuras políticas no filme, como a do ex-presidente dos Estados Unidos John Quincy Adams (Anthony Hopkins), um abolicionista não-assumido, que saiu do seu estado de comodidade para defesa dos africanos. Apesar disto, é um bom filme para ser assistido de forma crítica para um entendimento das condições deploráveis estabelecidas nos porões do navio.
O filme aborda um período (retrata um acontecimento no ano de 1839) no qual se vinha discutindo assiduamente por todo continente americano a possibilidade de fim do tráfico negreiro e abolição da escravidão. No contexto brasileiro, a complexa discussão nos mostrava que um dos posicionamentos principais era interromper o fluxo de escravos em busca de uma futura homogeneidade e regulação da reprodução dos negros, que, segundo "letrados" da época, corrompiam o país com os seus costumes. Ou seja, dentro da complexidade dos processos de fim do tráfico de escravos, a finalidade desses não era a inserção dos negros na sociedade e a sua equiparação em direitos políticos, econômicos e sociais, mas sim a manutenção da exclusão social desta etnia.
Dois fatores nos ajudam a compreender essa corrente de pensamento: O primeiro, foi a aplicação da Lei de Terras em 1850 no Brasil, que dificultou propositalmente o acesso às terras a negros recém libertos; O outro, foi o incentivo da vinda de imigrantes europeus para o país com o objetivo de embranquecimento populacional na segunda metade do século XIX. Essas duas ações práticas, nos mostram que a gradualidade do fim do trabalho escravo, era acompanhada pela preocupação e imposição de métodos e leis para a manutenção das hierarquias sociais entre brancos e negros. Assim, deve-se também tomar cuidado com o filme de Spielberg e sua possível visão maniqueísta do período histórico exposto em Amistad, mesmo que ele se refira a um contexto político de outro país, no caso, dos Estados Unidos.
O documentário Raízes do Brasil (Nelson Pereira dos Santos, 2004) nos mostra essa complexidade na formação do povo brasileiro na visão do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Rompendo com a ideia da existência de uma democracia racial no país, ele nos mostra a tentativa de manutenção de uma hierarquia social que teve seu longo processo de construção durante os aproximadamente 400 anos de imigração forçada, e que se mantém por meio da aplicação de outros métodos racistas até os dias atuais. Apesar da pouca quantidade de obras cinematográficas que abordam especificamente o tráfico negreiro, há filmes que nos ajudam a compreender as desigualdades raciais em diferentes momentos históricos, como 12 anos de escravidão (Steve McQueen, 2014) e Bem-vindo a Marly-Gomont (Julien Rambaldi, 2016) que exemplificam dois contextos distintos e a manutenção de disparidades étnico-sociais.
Rodrigo Lima
Graduando em História (USP)
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