Fonte da primeira imagem: HAZ
#ParaTodosVerem [FOTOGRAFIA]: Duas imagens uma ao lado da outra, separadas por uma linha branca. A primeira mostra uma cena do filme O Nome da Rosa (1986), em que três homens circundam um cadáver deitado sobre uma mesa, sendo que um o examina. A segunda imagem mostra um médico examinando um paciente em uma ambientação adequada.
Os acirrados debates que interpõem crença e ciência se acentuaram recentemente nos âmbitos público e privado em decorrência de um fenômeno pandêmico mundial: a COVID-19. A crise de credibilidade que a ciência vinha passando adquiriu novos contornos quando a discussão bizantina passou a determinar a vida e a morte de milhares de pessoas. O embate, que antes podia ser desprezado ou ignorado por alguns, se tornou uma questão de autodefesa, de nossa própria sobrevivência. A julgar pelos altos índices de inobservância das atuais regras sanitárias, não são poucos os que ignoram consensos da ciência para validar suas próprias crenças – para respaldar em termos quantitativos a relevância da questão.
Diante desse cenário, um filme antigo nos aparece a assombrar por semelhança, mas não mera coincidência. Baseado no livro homônimo de Umberto Eco, O Nome da Rosa (1986) retrata a investigação realizada pelo padre franciscano William de Baskerville em um mosteiro beneditino italiano, onde ocorre uma série de estranhas mortes. Na última semana de novembro de 1327, sete monges falecem, cada um em um dia da semana, em circunstâncias misteriosas. O frade William, que havia recebido a missão de investigar a ocorrência de heresias no mosteiro, passa então a investigar os óbitos.
A construção psicológica do padre William remete a uma representação do então novo intelectual renascentista, um homem com postura humanista e racional em oposição à mentalidade dogmática do homem medieval. Já os monges aparecem no decorrer do filme em uma série de cenas contraditórias, mostrando a insustentabilidade de suas crenças sob o ponto de vista racional. Assim, eles realizam flagelações, atos sexuais entre si, punições severas, dentre uma série de contradições à sua fé cristã. Através dessas representações, são construídas duas formas de se viver no mundo: a da crença, que tem suas bases frágeis, a ponto de nem mesmo seus fiéis conseguirem sustentar seus dogmas; e a da ciência, com base na construção racional e articulada nas investigações dos óbitos pelo frade franciscano.
Sendo a todo tempo impedido de avançar nas investigações por ser desmoralizado pelos monges, que atribuem origens místicas aos falecimentos, nós vivemos a agonia do padre a todo instante. As conversas entre os monges no filme nos mostram o quanto eles repudiam a ciência, ou qualquer forma diferente se pensar ou viver que não seja a deles. Qualquer linha de pensamento contrária às suas crenças são consideradas heréticas e devem ser eliminadas. Assim, em forma de crítica, o diretor Annaud conseguiu transpassar a luta contra a mistificação e o esvaziamento dos valores pela demagogia em uma sociedade aparentemente distante da nossa.
Dentre todas as teorias sobre a origem do nome da obra, uma me agrada mais: a da expressão “nome da rosa” ser utilizada pelos medievais para designar o poder das palavras. As palavras têm poder. Quem quer prova disso é só olhar ao nosso redor.
Cassiano Ribas
Graduando em Ciências Sociais (FFLCH-USP) e bolsista do Projeto CineGRI Ciclo 2019/2020.
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