#PraCegoVer [Fotografia]: Na imagem há dois homens sentados em uma mesa. À esquerda está o personagem Johann, que sorri enquanto conversa com Ranulpho, à direita, também sorridente. No meio da mesa há uma garrafa de pimenta pela metade. Ao fundo há uma parede velha com muitos buracos.
É fato que o Brasil tem como uma de suas principais características sociais a desigualdade de renda. Esse abismo fica ainda mais evidente quando mobilizamos marcadores como gênero e raça, comprovando que esse desequilíbrio se dá de forma estrutural.
Quando voltamos nosso olhar para as diferentes regiões do país, podemos observar que essa assimetria social também opera no campo geográfico. Historicamente, o Norte e Nordeste do Brasil sofrem com a negligência dos governos federais, fato que reflete diretamente no panorama social desses estados.
Nos últimos 18 anos, programas de transferência de renda como o Bolsa Família ajudaram a mitigar a miséria e fome da população, mas as crises econômicas recentes foram suficientes para trazer de volta os problemas estruturais já conhecidos. Segundo estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 2019, as grandes recessões que assolaram o Brasil entre 2014 e 2016 atingiram diretamente as regiões Norte e Nordeste, aumentando os níveis de desigualdade de renda em aproximadamente 5%.
O filme “Cinema, Aspirinas e Urubus” (Marcelo Gomes, 2005) aborda diretamente essas questões com um roteiro envolvente e bem estruturado. O enredo se passa na década de 1940 e conta a história de Johann (Peter Ketnath), um alemão foragido da Segunda Guerra que percorre o sertão nordestino com seu caminhão, utilizando o cinema como ferramenta para propaganda das Aspirinas que comercializa. Durante seu trajeto, o viajante conhece Ranulpho (João Miguel), sertanejo que sonha sair do Nordeste e transformar sua realidade. O choque entre essas experiências e histórias conflitantes resulta em uma jornada de descobertas nada previsível.
É interessante observar como as desigualdades sociais evidentes são mobilizadas entre os personagens. Enquanto Johann tem uma postura de resignação, enxergando todo o cenário com certa frieza, Ranulpho demonstra constante raiva e indignação. Ambos os personagens buscam fugir de suas realidades nas quais a morte, a fome e a violência são marcantes, tanto no contexto da guerra quanto no sertão do Nordeste.
O sonho de Ranulpho é voltar ao Rio de Janeiro, conseguir um emprego e viver com dignidade, além de poder mostrar para todos aqueles que o humilharam em sua primeira empreitada rumo à grande metrópole que ele é digno de respeito e que se orgulha de sua origem nordestina. A escassez de escolhas, inerente ao contexto social abordado, também é introduzida pela produção. Embarcar num trem superlotado rumo ao Amazonas para trabalhar na produção de borracha em terríveis condições, tentar a sorte na busca de um emprego na região Sudeste ou continuar na situação de miséria do Nordeste. As três alternativas oferecem um bom panorama social do Brasil na época retratada.
Voltando para nosso contexto atual, podemos observar que o recente apagão no Amapá é a “ponta do iceberg” de uma questão estrutural marcada pela disparidade, xenofobia e descaso. Nossa postura enquanto cidadãos brasileiros deve ser de denúncia e cobrança constante do poder público para que cumpram com o princípio de igualdade e justiça social previstos na Constituição.
A desigualdade regional no Brasil é um projeto que se perpetua ao longo das décadas. Tal situação só se transformará com projetos e políticas públicas progressivas concretas que sejam capazes de diminuir a concentração de renda para solucionar permanentemente os abismos que permeiam toda nossa história.
Yan Carvalho
Estudante de Ciências Sociais – USP
Referências bibliográficas:
Desigualdade sobe e afeta mais o Norte e Nordeste. Tribuna do Norte, 12 de dezembro de 2019. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/desigualdade-sobe-e-afeta-mais-o-norte-e-o-nordeste/468238. Acesso em: 01 de dezembro de 2020.
Apagão no Amapá: veja a cronologia da crise de energia elétrica. G1, 18 de novembro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2020/11/18/apagao-no-amapa-veja-a-cronologia-da-crise-de-energia-eletrica.ghtml. Acesso em: 01 de dezembro de 2020.
Brasil é o nono país mais desigual do mundo, diz IBGE. Exame, 12 de novembro de 2020. Disponível em: https://exame.com/economia/brasil-e-nono-pais-mais-desigual-do-mundo-diz-ibge/. Acesso em: 01 de dezembro de 2020.
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