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Laura Pimentel

Anatomia do Medo


#PraCegoVer [FOTOGRAFIA]: Cena do filme “Anatomia do Medo” (Ikimono no kiroku, Dir. Akira Kurosawa, 1955). Imagem em preto e branco, à frente um homem idoso, ajoelhado no chão enlameado, em meio a destroços. O homem está prostrado, com as mãos nos joelhos, olhando para o lado, os lábios rígidos e a testa franzida.


Assolado pela pobreza e violência, o Japão pós-Segunda Guerra passava por mudanças institucionais e sociais que, por seu turno, despertaram intensos conflitos geracionais. Esse cenário estimulou o profícuo cinema japonês das décadas seguintes, desde os delicados dramas familiares de Yasujirō Ozu, até os filmes de gangsters e Noirs, como os de Seijun Suziki e Takashi Nomura, passando pelos melodramas, que retratavam especialmente a condição feminina em uma sociedade em transformação. Poderíamos discorrer sobre o que o cinema japonês produziu do período por páginas e páginas, e valeria a pena! Mas há um elemento que perpassa quase toda essa produção: a ansiedade e o medo, causados tanto pelos traumas da guerra quanto pela insegurança em relação às mudanças sociais.


Akira Kurosawa (1910-1998) soube retratar com maestria a convulsão social e moral japonesa em “Anatomia do Medo” (Ikimono no kiroku, 1955). Nesse filme, o diretor contempla com especial atenção o trauma social causado pelos ataques atômicos a Hiroshima e Nagazaki (agosto de 1945). Assistir a esse filme em um momento em que o medo, a insegurança e a ansiedade causadas pela pandemia do coronavírus são marcantes em nossas vidas é uma experiência particularmente reveladora.


Kiichi Nakajima (Toshiro Mifune), um idoso e proprietário de fundição, está convencido de que uma guerra nuclear pode se iniciar a qualquer momento. Na tentativa de proteger sua família, Nakajima primeiro investe em um bunker anti bombas. Em seguida, decide que isso não é suficiente, e que o único lugar onde ele e sua família estariam a salvo seria numa fazenda no Brasil. Suas atitudes começam a gerar desentendimentos na família, os filhos sentem que o pai não é mais capaz de administrar o patrimônio, e entram com uma petição para considerá-lo mentalmente incapaz.


Inegavelmente, Nakajima está tomado pelo medo de forma patológica. Outras pessoas, enxergando de sua angústia, tentam acalmá-lo dizendo que não é preciso se preocupar tanto. Mas, como se pergunta um dos médicos convocados para analisá-lo, as coisas não são tão simples. “O que ele sente não é o mesmo que todos os japoneses também sentem?”, o médico se pergunta, “como nós podemos afirmar que ele foi longe demais? [...] nós não podemos, justificadamente, não levar a sério o medo que ele sente”.


Os traumas sociais causados por grandes conflitos e, especificamente no Japão, pelo ataque nuclear, não podem ser ignorados. Não basta dizer que é preciso superar e continuar a vida porque “todos vamos morrer um dia”, como diz um dos filhos da Nakajima. “Todos vamos morrer um dia, mas eu não serei assassinado!”, ele responde, surpreendendo a todos na sala de audiência.


A forma como Mifune interpreta o desespero do personagem é sutil e excêntrica ao mesmo tempo. Não somos levados a desqualificar as ações de Nakajima. Kurosawa nos faz enxergar que o protagonista de fato precisa de ajuda, mas também nos leva a entender seu medo. Substitua o medo da guerra pelo medo da contaminação e temos processos parecidos: pessoas que enfrentam a ansiedade caladas, sabendo que não têm como fazer muito pelos seus amigos e familiares, cada vez mais isoladas em sua angústia, se sentindo abandonadas porque os outros parecem não levar as coisas tão a sério, e o filme se mostra um ótimo reflexo do que muitos de nós podem estar sentindo.


No final das contas, é preciso viver, como afirmam os filhos de Nakajima, mas isso não significa que podemos ignorar a angústia de quem não consegue facilmente superar ou lidar com esses problemas. Quando pensamos em saúde mental, a ajuda deve vir acompanhada da compreensão das causas diversas desses medos, da depressão e ansiedade.


Laura Pimentel Barbosa

Doutoranda em Ciência Política pela FFLCH-USP, Mestre em Ciências Sociais pela Unesp, e Bacharel em Relações Internacionais pela UNESP.


Nota: A autora agradece a Caio Motta por apresentá-la a esse universo do cinema.


Referências


Filme: Anatomia do Medo (Ikimono no kiroku), Dir. Akira Kurosawa, Japão, 1955.


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