#PraCegoVer: Fotografia em preto e branco, quatro pessoas em pé em uma floresta. Menina guató no canto esquerdo, mulher e homem no centro e menino no canto direito. Todos estão descalços e encaram a câmera. Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guat%C3%B3
Através de cerâmicas e restos de alimentos encontrados em Poconé, no Mato-Grosso, um estudo estadunidense demonstrou que a comunidade indígena guató habita o sudoeste do Pantanal desde antes do século XI [1]. Nos anos 50, os guatós foram considerados extintos por doenças como gripe, varíola e tuberculose, por ataques de bandeirantes no século XVIII e o avanço da pecuária e do comércio na década de 1940. Entretanto, nos anos 70, após duas décadas sem qualquer auxílio governamental, foram “reencontrados” por missionários e seu status foi corrigido [2].
O longa-metragem “500 Almas” (2004), dirigido por Joel Pizzini, narra a sobrevivência do povo guató e, simultaneamente, a perda de sua identidade. O filme inicia no Museu de Berlim, onde estão expostos artefatos da cultura, e parte para imagens belíssimas da fauna e flora do Pantanal mato-grossense, abordando a relação íntima dos guatós, etnia canoeira, com a água. Ao longo do filme-ensaio, relatos dos indígenas expõem o desaparecimento da língua, práticas e costumes guató. Concomitantemente, outros relatos mostram a renovação da identidade desse povo, através da autodeclaração indígena.
Apesar da impressionante resiliência guató, em 2020, sua existência se encontra novamente em risco: em meio à pandemia do novo coronavírus, o Pantanal passou por uma das queimadas mais severas de sua história, afetando biomas como o Pampa, a Caatinga, o Cerrado, a Amazônia e a Mata Atlântica e populações históricas [3].
Dentre tantas ameaças, infelizmente, o povo guató, e todas as comunidades indígenas, se encontram em incessante luta contra o próprio governo federal brasileiro, que não limita suas palavras e muito menos ações para demonstrar profundo desprezo pela causa indígena. Como uma de suas primeiras medidas tomadas, o governo decidiu pela transição da FUNAI do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos [4] e a mudança da responsabilidade da demarcação de terras para o Ministério da Agricultura [5]. Apesar das decisões não terem durado tanto tempo, elas expõem o posicionamento do atual governo e suas tentativas de comprometer a segurança da causa.
"Vocês têm na primeira vez da história do Brasil um presidente que está honrando o que prometeu durante a campanha. Um presidente que acredita e valoriza a família.” Em agosto de 2019, durante a “Marcha para Jesus”, típica procissão evangélica, Jair Bolsonaro defendeu mais uma vez o que ele chama de “família tradicional brasileira” [6]. No início do ano seguinte, 2020, em uma transmissão ao vivo através de rede social, ofendeu novamente as comunidades indígenas: "Índio tá evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós”, ao anunciar Hamilton Mourão, vice-presidente, como chefe do Conselho da Amazônia, órgão voltado, ironicamente, para a proteção e desenvolvimento da Amazônia [7].
Os guatós, cultura de mais de dez séculos de história, são a definição mais literal de “família tradicional brasileira” e estão pela terceira vez em risco de extinção e, diferentemente das décadas de 1950 e 1960, quando não possuíam quaisquer auxílios governamentais, são alvos das políticas monstruosas de Bolsonaro e seus aliados.
Mariana Ramos
Graduanda em Ciências Sociais (FFLCH – USP) e bolsista do Projeto CineGRI.
Referências bibliográficas
[1] GUATÓS vivem no Pantanal há mil anos, revela teste. Folha de São Paulo, 1999. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq31089907.htm >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
[2] VALENTE, Rubens. FILME narra história de índios tidos como extintos e que vivem na região do Pantanal. Folha de São Paulo, 1999. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq31089906.htm >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
[3] PANTANAL teve 14% do bioma queimado apenas em setembro e área devastada já é recorde histórico, diz Inpe. Globo, 2020. Disponível em: < https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/10/07/pantanal-bate-recorde-historico-de-numero-de-queimadas-em-setembro-desde-inicio-das-medicoes-do-inpe-com-mais-de-14-mil-focos-em-um-mes.ghtml >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
[4] GESTÃO da Funai vai para Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Canal Rural, 2018. Disponível em: < https://www.canalrural.com.br/noticias/gestao-da-funai-vai-para-ministerio-da-mulher-familia-e-direitos-humanos/ >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
[5] MINISTÉRIO da Agricultura será responsável pela demarcação de terras indígenas. UOL, 2019. Disponível em: < https://migalhas.uol.com.br/quentes/293643/ministerio-da-agricultura-sera-responsavel-pela-demarcacao-de-terras-indigenas >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
[6] BOLSONARO defende "família tradicional" e chama ideologia de gênero de "coisa do capeta". Correio do Povo, 2019. Disponível em: < https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/bolsonaro-defende-fam%C3%ADlia-tradicional-e-chama-ideologia-de-g%C3%AAnero-de-coisa-do-capeta-1.357773 >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
[7] "ÍNDIO tá evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós", diz Bolsonaro. UOL, 2020. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/23/indio-ta-evoluindo-cada-vez-mais-e-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro.htm  >. Acesso em: 3 de novembro de 2020.
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